sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O lugar da poesia


     É preciso reconhecer a beleza e a lucidez dos versos de Manuel de Barros. Ele não pertence ao mundo dos razoáveis. Construiu uma poesia com substrato social profundo e responsável, sem dicotomia vida-trabalho e sem abolir os afetos da dinâmica da vida.
     Para quem quiser conhecer um pouco mais da obra e da personalidade atraente do poeta sul-mato-grossense indico assistir ao documentário "Só dez por cento é mentira”. 
     
"Aprendo mais com as abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para ser menor, para o insignificante,
que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma barata -
cresce de importância para o meu olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão - antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”


Retrato do artista quando coisa, Manoel de Barros.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

No divã


     "Há mais mistérios entre o céu e a terra, Horácio, que sonha a vã Filosofia". Hamlet, Shakespeare

     Definitivamente a mente é movida por processos criativos de expansão.
     Melhor aproveitar dos devaneios freudianos para não afunilar o olhar nem viver infeliz em cercas impostas. 
     Para um certo vienense, revolucionário do pensamento humano, com seu charuto na mão, seu olhar misterioso e sua cara terrivelmente invocada, a arte e o lúdico são fontes de inspiração para recriar a si mesmo além de objetos de satisfação erótica. Nessa concepção, o artista seria aquele que preserva o recalcamento e aprimora a imaginação criadora da criança. Por isso, tanto o artista, como seus leitores, realizam simbolicamente pela arte os desejos reprimidos, tal como a criança faz ao manipular a realidade em suas brincadeiras.
     A emoção estética diante de uma poesia, uma música, uma tela, uma escultura é resultado antes de tudo de um processo de reelaboração subjetiva a partir de elementos do inconsciente e do posterior significado extraído da obra por cada observador atento. Interessante isto, primeiro a emoção, só depois racionalizamos sobre o registro estético.
     Assim, o escritor é também um incorrigível sedutor. Como eu suspeitava... A leitura é um constante convite à sublimação, tentativa de modificar a realidade para obter nela o que nos fora negado por ela. Convite, inclusive, extensivo a todos aqueles que desejarem se candidatar, livre e espontaneamente, a essa incrível forma de prazer inventada pelos humanos. Transgressora e genial como qualquer criação artística.
     Por fim , encerro esse diálogo psicanalítico com a famosa frase do livro “O idiota" de Dostoievski: “A beleza salvará o mundo". Alguém duvida? Pode deixar, Freud explica...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Metalinguagem

     A poesia é uma espécie de transfiguração. A ela foi concedido o poder de reestabelecer suavemente o desejo e a alegria perdidos. Sempre em pequenas doses vitais.
     Nela é possível depositar os cansaços que nos assombram. Nisto talvez resida o papel mais importante da arte: o descanso do existir sem tréguas.
     Hoje relembrei dos versos de Helena Kolody: “Meu nome, desenho a giz no muro do tempo. Choveu, sumiu”. Misto de dor e contentamento num único traçado.
     O verso simples da mulher paranaense, solteira e sem filhos, ainda pouco conhecida pelos leitores de poesia, me fez pensar na vida como muro que se escreve a giz. Aprendi a não ter medo de passar. Escolhi viver com o mínimo de ilusões. Sou apenas aquilo que posso.
     Não sou Helena, mas absorvo seu poema enquanto expressão lírica e existencial. O seu escrito, por hora, é meu. Acomoda-se onde em mim é mais solitário e ali resolve morar. Uma pungente dor que alivia no ato de se permitir doer. Não ilude, não anestesia, dói e, por vezes, cura.
     Um poema de hora em hora é uma prescrição médica que tenho o prazer de cumprir.
    O poema é revelação. O silêncio é rompido e os poetas vêm nos visitar. Hoje o dia foi de Helena Kolody e sua linguagem em forma de melodia. Sublime e discreta  Versos curtos e musicais.
     De resto, correr para quê? Para apagar a luz? Para pagar as contas? Para estudar para a prova? Não. Não é preciso ir a nenhum lugar. O tempo é minha porta. Por ele entro e saio quando quero.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Esquecimento

     O que sei de mim por vezes esqueço. Não há vergonha em confessar fraquezas. Só não quero fingir uma força que não possuo. Se possível, sem discurso rebuscado, sem piedade, sem papel de vítima.
     O que sei é que há uma tristeza superior sobrepondo-se às costumeiras. Até meu café anda ficando mais amargo. Nas ladeiras desta cidade, a dor apresenta tintas mais fortes e o choro ainda repete-se monótono pelas mesmas causas de antes.
     Na mesa o jornal apodrece de tanto passado e as plantinhas na porta da cozinha sofrem, murchas e emburradas, pelos descuidos da dona. Ainda há muitos lugares inabitados nessa casa. Difícil reconhecer, mas as luzes acessas não retiram o temor dos passos nem o tremor das mãos.
     As noites ultimamente têm tido cheiro de hortelã, canela ou erva-doce, só não encontrei ainda a razão das tristezas. Apenas sinto que doem com seus aromas estranhos. Inadequação. Quase uma desistência...
     Chás madrugada a fora, poesia em hora inapropriada, água no rosto para esconder o cansaço.
     Na agenda, um bilhete reaparece com uma esquecida frase escrita a quase dois anos atrás. Com letra caprichada, em vermelho vivo: “A vida só pede um pouco de coragem”.
     Lembrei-me do meu primeiro emprego, da carteira assinada, da ousadia em brecar o ritmo, do prazer em narrar histórias para crianças e ver seus olhos fascinados pelo encantado sítio criado por um certo Monteiro Lobato.
     Talvez eu tenha desaprendido a contar histórias.
     Talvez a poesia tenha mesmo desaprendido de mim.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Pausa

     Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou na feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se parecem os óculos sobre a mesa.
     Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas?
     Com algum ciclista tombado?
     Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parecem mesmo?
     E sinto que, enquanto eu não puder captar a sua implícita imagem-poema, a inquietação perdurará.
     E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara ao meu Dom Quixote que uns óculos sobre a mesa, além de parecerem apenas uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois — Dom Quixote ou Sancho? — vive uma vida mais intensa e portanto mais verdadeira...
     E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida.
     Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor.
     E agora?
     Por enquanto, ante a atual insolubilidade da coisa, só me resta citar o terrível dilema de Stechetti:
    “Io sonno um poeta o sonno um imbecille?”
     Alternativa , aliás, extensiva ao leitor de poesia...
     A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele.
     E daí?
    —Mas o melhor — pondera-me, com a sua voz pausada, o meu Sancho Pança —, o melhor é repor depressa os óculos no nariz.

QUINTANA, Mário, A vaca e o hipogrifo. Porto Alegre: Garatuja, 1977

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Médicos: Frágeis deuses de pés de barro.

     Qual a distância entre a intenção e o gesto? E do discurso à prática? Juízos demais ou juízos de menos?
     Sou movida mais por perguntas do que por respostas. Certezas demais paralisam e emburrecem... O que não quero é essa estranheza de viver em terra de cegos que se julgam reis.
     “Quanto maior a armadura, mais frágil o ser que a habita”. Essa foi a colocação mais sábia que eu ouvi à beira de um leito até o momento. E ele era apenas um paciente frágil, debilitado, deitado numa cama fria de hospital. Falava-me do atendimento que recebera do residente antes de eu entrar para conversarmos. “Aquele moço parece ter tudo para ser um bom médico, só lhe falta o essencial...”, completou com voz séria e enfática.
     A anamnese planejada já não tinha mais importância naquela hora e mereceu ser adiada. Saí do quarto com um traço de vergonha de mim e do pouco que julgava saber até então. Nunca o caminho de volta para casa fora tão demorado. Mas também nunca tão proveitoso. O pior (ou melhor?) era dar conta de tudo aquilo que aquela frase havia provocado em mim.
     “Quanto maior a armadura, mais frágil o ser que a habita”, a frase curta e cheia de significado e poesia insistia em produzir ecos que me incomodavam. A sensação que eu tinha era de que a partir daquele dia tudo precisava ser diferente. Talvez por entender que seria cada vez mais difícil não me render ao insidioso processo de embrutecimento que insistia em me rondar pelos corredores de um hospital. 
     O canteiro de flores coloridas visto diariamente pela manhã à beira do caminho não pode ser incapaz de sensibilizar olhares que pretendem desenvolver complexas habilidades de observação clínica. Ainda sofro ao ouvir as repetitivas falas dos sarcásticos de plantão, em suas críticas ácidas, dizendo implicitamente que nunca têm tempo para “sentimentalismos” e “utopias”.
     Uma pena! Quem sabe, um dia, ainda descubramos que a competência almejada não é um caminho de durezas. Aliás, nunca foi. Nunca será. Nem tenhamos que assumir o triste diagnóstico pessoal de Fernando Pessoa no poema "Tabacaria":
 
“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.”

      Por isso, continuo irremediavelmente preferindo versos que poetizam um ideal e cantarolam uma esperança, ainda tão essenciais...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Comédia romântica

    Vivo sem canto e sem muitas esperanças de primavera. Nem a ciranda do tempo acenando a chegada da estação das flores faz a alegria renascer. A porta entreaberta não suspende o desejo de ficar.
     Respondo sem palavras. Demoro a acontecer. A vida em medidas exageradas amarga no fim, mas o tempo também bem é cruel em ensinar que não perdoa meus medos.
     Optamos pelo ferimento doendo e suas insinuantes recordações. É claro que sempre tivemos cara de tragédia, de anéis simplórios, de bijuterias de esquina, de brigas sem motivo, de longas conversas madrugada afora e roupa retro.
     Agora os silêncios são rompidos apenas por um suspiro incompreensível. Um olhar de culpa do que não fizemos por nós. A difícil tarefa de refazer o que sobrou. Agora eu não preciso mais implicar com sua roupa nem ouvir reclamações da minha falta de tempo para você. Nenhum telefonema às três da manhã para dizer que sonhava comigo.
     Somos assim, meio heróicos, meio prosaicos. Nosso maior charme, nosso pior defeito.
    Sempre na medida incerta de Drummond. Com uma boa dose de poesia e outra de humor.
    O bilhete na geladeira guarda versos consagrados que ainda não consegui decifrar. Definitivamente não parece uma estratégia de quem quer sair de cena.

“E o amor sempre nessa toada
briga perdoa perdoa briga
não se deve xingar a vida,
a gente vive depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.”
Carlos Drummond de Andrade

      Segundo Ato. Palco vazio. Apagaram-se as luzes. Volto amanhã para saber o final dessa história...

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Cartão de visita

Por favor,
tome cuidado onde pisa,
por onde passa.
Meu coração não é praça,
espaço público, lugar de ninguém.
Nem ache que vai me agradar jogando um vintém.
Agora que sabe disso,
se quiser entrar...
Seja bem-vindo ao meu lugar!
Olhares lá da soleira da porta não importam.
São rasos demais.
Entre no recinto e explore o ambiente.
Não viva de meios, 
subterfúgios passageiros, 
encontros marcados para ir embora.
Permita-se mais que meros esbarrões nas pessoas.
Observe com calma a inconclusão das falas
e o brilho dos olhares.
Há muito conteúdo raro atrás de um silêncio aparente.
Porque a pressa se ela não combina com desejos de descoberta.
Uma casa é feita de muitos quartos.
Queira visitar todos eles atento aos detalhes.
Não estranhe se a de-coração é contrastante,
absurdo seria se não houvesse a multiplicidade do eu.
Em sua solidão, habitação ainda inabitada, presença-ausente.
O coração é casa-lugar de muitos desejos.
Pulsando ora confessáveis, ora inconfessáveis.
Em estado de silêncio e mistério.
Sinuosos, outrora sinceros.
Simples e no mais absurdo exagero.
Convictos embora, às vezes, hesitantes.
Deveras sim, deveras não.
O amor cumpre a sina de aproximar-se do precário,
do mais frágil e imperfeito realce.
Não há mais razão para medos.
Está abolida a necessidade de personagens.
Pausa para um suspiro...
...Alívio...
Posso ser apenas aquilo que posso.
Nada mais.
O aperfeiçoamento é fruto mais tardio,
de cultivos mais demorados.
Desdobramentos secretos de sabores reais.
Com aroma de acolhimento e canela
para ser degustado lentamente.
A dois...

sábado, 31 de outubro de 2009

Sacudidelas


     Em tempos de idealizações amorosas sem limites e tanta gente aprisionada em imaturidades relacionais, é sempre bom algumas sacolejadas. Às vezes os poetas chegam sem pedir licença e desmoronam nosso fantástico mundo de contos de fadas e castelos de areia. Aí, pronto. O conflito está instalado! 
     Então, nos vemos novamente com a vida nas mãos a espera de uma reconstrução possível. Optei por não fugir do que os poetas têm a dizer, mesmo que o significado de suas provocações não acabe em ponto final. É até melhor que reverberem mesmo. Prefiro assim. Quem sabe um dia ainda não aprenda melhor os mistérios da metáfora do tear...
     A coletânea (dois poemas e um conto) é maravilhosa, aproveite! Com a palavra, Manuel Bandeira, Adélia Prado e Marina Colasanti.

"Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
e te jurar uma paixão do tamanho de um bonde,
se ele chorar,
se ele se ajoelhar,
se ele se rasgar todo,
não acredita não, Teresa.
É lágrima de cinema.
É tapeação.
Mentira.
CAI FORA."
 
Manuel Bandeira


"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial;
o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher,
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho."
 
Adélia Prado


A Moça Tecelã

"Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte."

Marina Colasanti

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Nem princesa, nem espelho mágico.

    

Pablo Picasso, Moça Diante do Espelho, 1932

     As palavras não me pertencem. Apenas sorriram para mim e eu me entreguei a elas. Sempre gostei do poder de arrancá-las do silêncio. Hoje, vivo de tecer metáforas para não entristecer. É um jeito próprio de ser solidão. Talvez por acreditar que só nos sentiremos verdadeiramente acompanhados quando nos soubermos sós. A contradição está apenas na aparência. O aprendizado consiste na difícil tarefa de não ser alvo de idealizações ou carências alheias, nem se deixar banalizar ou perder de si mesmo.
    De resto, nada me ouve, nada me acompanha, nada vejo. Estou cansada do óbvio que não exige esforço. Tudo que sobra em mim é ausência, questões existenciais que não deixam o poeta descansar.
     É sempre uma incongruência, uma dificuldade em adaptar-me às estruturas da superfície. Riso contido, canção dissonante, mão que tateia antes de possuir, medo de pequenas causas, necessidade maior de tempo para assimilar a vida. Dor que não se localiza, mas arde lentamente em processo de catarse.
     Queria apenas o direito de ficar diante do espelho imaginário de Picasso sem pressa de voltar ao ofício das representações sociais, de lamentar-me sem maiores explicações. Sem muita necessidade de dizer a razão do choro, das noites de pouco sono e poder deixar as malas que estragam o prazer da viagem por algum canto.
     Dizem por aí que o poeta anda mudo. A poesia perdeu a graça e o discurso ficou mais triste que a fala.
     É sempre mais difícil se ver fora da imagem projetada no espelho. A cara de sempre já não me agrada mais.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Poema anacrônico

Amor amado,
apressado como quem sabia ter pouco tempo.
É ainda mais belo vê-lo assim:
resguardado em versos,
escondido na gaveta,
empoeirado de memórias,
adormecido em esquecimentos que ainda aguardam ser revelados.
De distâncias mais que ausência.
De entardeceres mais que noite.
De cores mais que cinza.
Reticentes, as palavras se juntam a poeira e ao papel.
Teimosas, compõe a história,
relógio das horas,
mosaico que o autor não terminou.
O que antes era afoito,
agora está quieto,
apodrecendo de tanta maturidade.
O poeta recompõe o corpo que se perdeu no tempo.
Anacrônico.
O amor jamais morre, vira PALAVRA.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Despertar

     Deus veio me visitar. Chegou quando os primeiros raios de sol passavam pela fresta da janela e aqueciam meu quarto. Nem percebi que Ele velava meu sono tamanha mansidão. Sua beleza era tão intensa que qualquer palavra se perderia no silêncio.
     Deus estava ali. O Eterno havia tornado-se presente e não combinava com palavras. E quando eu mal conseguia admitir a existência daquela cena inacreditável, Ele me olhou e suavemente estendeu a mão me ajudando a levantar. Depois sorriu se divertindo com meu jeito atrapalhado de me aprontar . Sugeriu até algumas modificações no meu guarda-roupa. "Um pouquinho de organização não faz mal a ninguém" - proferiu em tom de repreensão e brincadeira. Disse ainda: “Você precisa aprender a dormir mais cedo”. Balancei a cabeça concordando novamente.
     Depois me confidenciou segredos enquanto estávamos sentados à mesa da minha cozinha. A vida me reservava mudanças pela frente e era bom saber que eu não estava só.
      Sem maiores cerimônias, bebeu uma xícara de café , comeu um pedaço de bolo que eu havia preparado, elogiou os sabores e se foi... enquanto eu ainda observava o seu jeito de olhar para mim.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eu prefiro a beleza


     Não sou a favor de nenhum tipo de idealização. Projeções só servem para nos enxergam melhores ou piores do que realmente somos. Mas alguns termos são inadmissíveis! Já se usou cachorra, égua, popozuda, lacraia e ainda estamos no tempo das mulheres frutas. E pensar que os pomares já foram recursos líricos e fonte de inspiração de tantos poetas...
     Essas são as “metáforas” dos compositores que ganham a mídia e que ouvimos cantar por aí. Eu, sinceramente, acho essa história mais do que uma simples exaltação ao mau gosto. É insulto mesmo! E da pior espécie! Um lixo musical que vão vomitando em nossos ouvidos como se não soubéssemos o que é ter bom gosto. E nós nem reagimos... Ao contrário, passamos indiferentes porque pensamos, ingenuamente, que aquilo não toca na nossa casa, no nosso carro, nas festas que freqüentamos e, portanto, não nos atinge.
     Não importa qual seja o seu gosto ou estilo musical preferido: jazz, axé, pagode, forró, rock ou qualquer um outro. Não se trata disso, mas da intenção que o "produto" tem ao ser colocado para o "consumo".
     Vivemos uma época em que as mulheres comemoram muitas vitórias nascidas de lutas corajosas contra as concepções machistas entranhadas no mundo e prosseguem conscientes de que há ainda muito que fazer. Conquistar inclusive espaço nas academias de letras, no cinema, na produção de discos, no combate à exploração sexual, no direito a uma assitência integral à saúde. Mas o que vemos é uma contracultura que insiste em banalizar a mulher rebaixando-a a uma condição de animal irracional, de fruta comestível. Lógica bastante descartável por sinal. Declarada reificação do corpo, perda completa da identidade do que é ser feminina, deturpação completa do que é sensualidade.
     De quem é a maior vergonha: do compositor que oferece essa “pérola” ou de quem a canta?
     Peço que pelo menos pense nisso, pois é preciso ter cuidado! Podem estar menosprezando nossa inteligência e nossa capacidade reflexiva. O que mais existe por aí é indústria de cultura enlatada. E quem se acostuma demais com enlatados industrializados fáceis pode depois rejeitar a outra comida porque acabou esquecendo da riqueza de possibilidades que podia usufruir e passar a se contentar com uma "vidinha" acomodada , sem muito esforço de reflexão. Vão se tornando pessoas preguiçosas , conformadas , mais ou menos ...
     Você, o que espera da música? Admiti algo menor que a arte, a transcendência? Eu quero beleza!
     Muitos compositores e intérpretes ainda hoje amargam o dissabor de não terem espaço na mídia ou serem esquecidos pelo grande público. A conseqüência disso é o processo de total desconhecimento de uma fina produção cultural que o Brasil tem e não chega aos nossos ouvidos, porque eles, não raramente, já estão entulhados por demais.
     É preciso ter a consciência de que é a identidade de nosso país que somos privados de conhecer. Deixamos de conhecer a nós mesmos e nossos vários rostos expressos na diversidade das inúmeras produções artísticas que não alcançam repercussão. O consolo é que o talento de muita gente ainda continua a resistir bravamente produzindo cultura, cinema, cantando e compondo enquanto lutam criativamente para sobreviver no meio dito alternativo/independente.
     Lamentavelmente, o fato é que os maiores perdedores dessa história somos todos nós, a cultura nacional e a sensibilidade humana que deixa de provar belezas raras que nunca serão descobertas enquanto estiverem sendo massacradas pelo barulho ensurdecedor da “velocidade 5” .
     Não comprar, não ouvir e não divulgar é uma forma de exigir respeito à nossa inteligência e ao nosso desejo sincero de beleza. Nós merecemos respeito. É só exigir! Eu assumo minha opção: a favor da arte, da beleza, do bom gosto, da música que faz pensar, da televisão e cinema inteligentes e do boicote ao mau gosto.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Porta de entrada

     A casa é sempre uma metáfora apropriada da vida. Lugar onde o coração não carece de muitas explicações, apenas repousa sereno no lugar de sua identificação. Dentre todos os espaços, a cozinha é certamente o mais poético deles. Quem nasce em Minas Gerais aprende esses mistérios desde cedo.
     Cozinha é o lugar da intimidade, de acolher os mais amigos, das conversas segredadas, das fofocas sem malícia (risos...). Ali, a vida vira prato cheio para quem se empenha em desvendar os sabores velados próprios de um cotidiano sem grandes requintes. Sabores simples e, ao mesmo tempo, essenciais.
     Cozinha também é território de vaidades. Lugar onde se arranca elogios apelando-se para o ponto fraco da maioria. Poetas são cozinheiros, seres vaidosos, que gostam de se exibir cruamente nas prateleiras das livrarias expondo o que é nosso e nem sabíamos possuir. Retiram-nos do anonimato, garbosos por nos envolver em seu jogo de sedução. Obra dos temperos. Das palavras também.
    A cozinha também foi feita para a calma. Receitas são exigentes tanto quanto poemas. Precisam de tempo e dedicação para adquirirem sabor.
     Assim, a vida cumpre à risca suas regras embora, às vezes, escolha girar num compasso diferente do habitual. Aí, então, surgem os poetas propondo pausas que nos desorganizam com uma nova lógica. Acordes dissonantes, silêncios falantes, ausências ansiosas esperando encontros repletos de saudades. Tempo passando, conjugando presente, eternizando-se aos poucos...
     Num breve instante de encanto, o mundo pára e adquire novas nuances quando se adentra pela porta dos  fundos.
      Ela dá acesso à melhor parte da casa. A poesia, à melhor parte de nós.

Por que um blog?

     Os mais precipitados em formular opiniões diriam "vontade de aparecer" ou, em voz de sentença, "exibicionismo". Verdadeiramente não sei. São apenas suposições. Tentativas vãs de imaginar o que se passa na cabeça dos leitores em tempos velozes de informações pela internet.
     Como sempre me afeiçoei mais com as pausas que fazem pensar, prefiro acreditar nos olhares que nos vêem com um pouco mais de calma. Nesse momento, prefiro falar de motivações sensíveis e sinceras. 
     O interesse pela palavra nasceu com o desejo de traduzir o que, por hora, nos cala. A arte tem esse poder. Antes de qualquer enunciação; a investigação, a sondagem, a observação. Daí para a decisão de publicizar uma "produção literária" tão principiante foi um longo percurso de amadurecimento e coragem. Muita coragem! O difícil processo de não se acomodar e aceitar que a gaveta não pode ser a morada definitiva do texto. É preciso admitir que ele fala do atemporal e de dimensões coletivas. Os poetas nos dão generosamente seus poemas como se fossem nossos. Nós nos apropriamos de suas expressões líricas porque nos dão a sensação de que sempre tivemos vontade de dizer aquilo que lemos, mas nunca soubemos como fazê-lo. 
     O que dizer a não ser que, quando o autor escreve, o mundo escreve com ele. Lanço, então, em suas mãos uma proposta. Um ambiente despretensioso e aconchegante. Pausas no dia para recriar a vida de todo dia. 
     O ritmo será sempre uma escolha sua. O drama só pede que embarque na trama e se acostume com o desassossego próprio da caminhada. Desconjugue os tempos, pronuncie o discurso, reinvente a gramática e encante-se pelo poema. Na porta ficará sempre o convite: "Permita-se viagens mais venturosas!" Será um imenso prazer ter sua companhia...