segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Esquecimento

     O que sei de mim por vezes esqueço. Não há vergonha em confessar fraquezas. Só não quero fingir uma força que não possuo. Se possível, sem discurso rebuscado, sem piedade, sem papel de vítima.
     O que sei é que há uma tristeza superior sobrepondo-se às costumeiras. Até meu café anda ficando mais amargo. Nas ladeiras desta cidade, a dor apresenta tintas mais fortes e o choro ainda repete-se monótono pelas mesmas causas de antes.
     Na mesa o jornal apodrece de tanto passado e as plantinhas na porta da cozinha sofrem, murchas e emburradas, pelos descuidos da dona. Ainda há muitos lugares inabitados nessa casa. Difícil reconhecer, mas as luzes acessas não retiram o temor dos passos nem o tremor das mãos.
     As noites ultimamente têm tido cheiro de hortelã, canela ou erva-doce, só não encontrei ainda a razão das tristezas. Apenas sinto que doem com seus aromas estranhos. Inadequação. Quase uma desistência...
     Chás madrugada a fora, poesia em hora inapropriada, água no rosto para esconder o cansaço.
     Na agenda, um bilhete reaparece com uma esquecida frase escrita a quase dois anos atrás. Com letra caprichada, em vermelho vivo: “A vida só pede um pouco de coragem”.
     Lembrei-me do meu primeiro emprego, da carteira assinada, da ousadia em brecar o ritmo, do prazer em narrar histórias para crianças e ver seus olhos fascinados pelo encantado sítio criado por um certo Monteiro Lobato.
     Talvez eu tenha desaprendido a contar histórias.
     Talvez a poesia tenha mesmo desaprendido de mim.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Pausa

     Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou na feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se parecem os óculos sobre a mesa.
     Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas?
     Com algum ciclista tombado?
     Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parecem mesmo?
     E sinto que, enquanto eu não puder captar a sua implícita imagem-poema, a inquietação perdurará.
     E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara ao meu Dom Quixote que uns óculos sobre a mesa, além de parecerem apenas uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois — Dom Quixote ou Sancho? — vive uma vida mais intensa e portanto mais verdadeira...
     E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida.
     Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor.
     E agora?
     Por enquanto, ante a atual insolubilidade da coisa, só me resta citar o terrível dilema de Stechetti:
    “Io sonno um poeta o sonno um imbecille?”
     Alternativa , aliás, extensiva ao leitor de poesia...
     A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele.
     E daí?
    —Mas o melhor — pondera-me, com a sua voz pausada, o meu Sancho Pança —, o melhor é repor depressa os óculos no nariz.

QUINTANA, Mário, A vaca e o hipogrifo. Porto Alegre: Garatuja, 1977

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Médicos: Frágeis deuses de pés de barro.

     Qual a distância entre a intenção e o gesto? E do discurso à prática? Juízos demais ou juízos de menos?
     Sou movida mais por perguntas do que por respostas. Certezas demais paralisam e emburrecem... O que não quero é essa estranheza de viver em terra de cegos que se julgam reis.
     “Quanto maior a armadura, mais frágil o ser que a habita”. Essa foi a colocação mais sábia que eu ouvi à beira de um leito até o momento. E ele era apenas um paciente frágil, debilitado, deitado numa cama fria de hospital. Falava-me do atendimento que recebera do residente antes de eu entrar para conversarmos. “Aquele moço parece ter tudo para ser um bom médico, só lhe falta o essencial...”, completou com voz séria e enfática.
     A anamnese planejada já não tinha mais importância naquela hora e mereceu ser adiada. Saí do quarto com um traço de vergonha de mim e do pouco que julgava saber até então. Nunca o caminho de volta para casa fora tão demorado. Mas também nunca tão proveitoso. O pior (ou melhor?) era dar conta de tudo aquilo que aquela frase havia provocado em mim.
     “Quanto maior a armadura, mais frágil o ser que a habita”, a frase curta e cheia de significado e poesia insistia em produzir ecos que me incomodavam. A sensação que eu tinha era de que a partir daquele dia tudo precisava ser diferente. Talvez por entender que seria cada vez mais difícil não me render ao insidioso processo de embrutecimento que insistia em me rondar pelos corredores de um hospital. 
     O canteiro de flores coloridas visto diariamente pela manhã à beira do caminho não pode ser incapaz de sensibilizar olhares que pretendem desenvolver complexas habilidades de observação clínica. Ainda sofro ao ouvir as repetitivas falas dos sarcásticos de plantão, em suas críticas ácidas, dizendo implicitamente que nunca têm tempo para “sentimentalismos” e “utopias”.
     Uma pena! Quem sabe, um dia, ainda descubramos que a competência almejada não é um caminho de durezas. Aliás, nunca foi. Nunca será. Nem tenhamos que assumir o triste diagnóstico pessoal de Fernando Pessoa no poema "Tabacaria":
 
“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.”

      Por isso, continuo irremediavelmente preferindo versos que poetizam um ideal e cantarolam uma esperança, ainda tão essenciais...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Comédia romântica

    Vivo sem canto e sem muitas esperanças de primavera. Nem a ciranda do tempo acenando a chegada da estação das flores faz a alegria renascer. A porta entreaberta não suspende o desejo de ficar.
     Respondo sem palavras. Demoro a acontecer. A vida em medidas exageradas amarga no fim, mas o tempo também bem é cruel em ensinar que não perdoa meus medos.
     Optamos pelo ferimento doendo e suas insinuantes recordações. É claro que sempre tivemos cara de tragédia, de anéis simplórios, de bijuterias de esquina, de brigas sem motivo, de longas conversas madrugada afora e roupa retro.
     Agora os silêncios são rompidos apenas por um suspiro incompreensível. Um olhar de culpa do que não fizemos por nós. A difícil tarefa de refazer o que sobrou. Agora eu não preciso mais implicar com sua roupa nem ouvir reclamações da minha falta de tempo para você. Nenhum telefonema às três da manhã para dizer que sonhava comigo.
     Somos assim, meio heróicos, meio prosaicos. Nosso maior charme, nosso pior defeito.
    Sempre na medida incerta de Drummond. Com uma boa dose de poesia e outra de humor.
    O bilhete na geladeira guarda versos consagrados que ainda não consegui decifrar. Definitivamente não parece uma estratégia de quem quer sair de cena.

“E o amor sempre nessa toada
briga perdoa perdoa briga
não se deve xingar a vida,
a gente vive depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.”
Carlos Drummond de Andrade

      Segundo Ato. Palco vazio. Apagaram-se as luzes. Volto amanhã para saber o final dessa história...

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Cartão de visita

Por favor,
tome cuidado onde pisa,
por onde passa.
Meu coração não é praça,
espaço público, lugar de ninguém.
Nem ache que vai me agradar jogando um vintém.
Agora que sabe disso,
se quiser entrar...
Seja bem-vindo ao meu lugar!
Olhares lá da soleira da porta não importam.
São rasos demais.
Entre no recinto e explore o ambiente.
Não viva de meios, 
subterfúgios passageiros, 
encontros marcados para ir embora.
Permita-se mais que meros esbarrões nas pessoas.
Observe com calma a inconclusão das falas
e o brilho dos olhares.
Há muito conteúdo raro atrás de um silêncio aparente.
Porque a pressa se ela não combina com desejos de descoberta.
Uma casa é feita de muitos quartos.
Queira visitar todos eles atento aos detalhes.
Não estranhe se a de-coração é contrastante,
absurdo seria se não houvesse a multiplicidade do eu.
Em sua solidão, habitação ainda inabitada, presença-ausente.
O coração é casa-lugar de muitos desejos.
Pulsando ora confessáveis, ora inconfessáveis.
Em estado de silêncio e mistério.
Sinuosos, outrora sinceros.
Simples e no mais absurdo exagero.
Convictos embora, às vezes, hesitantes.
Deveras sim, deveras não.
O amor cumpre a sina de aproximar-se do precário,
do mais frágil e imperfeito realce.
Não há mais razão para medos.
Está abolida a necessidade de personagens.
Pausa para um suspiro...
...Alívio...
Posso ser apenas aquilo que posso.
Nada mais.
O aperfeiçoamento é fruto mais tardio,
de cultivos mais demorados.
Desdobramentos secretos de sabores reais.
Com aroma de acolhimento e canela
para ser degustado lentamente.
A dois...