domingo, 27 de junho de 2010

Nem num post só

     Escrevi um estratagema audacioso para encontrá-lo entre canto e rima. Nos seus planos, o meu amor é a nota mais dissonante que a sua banda já tocou. Pode confessar. Só acreditei no que disse ser possível e assumi o imponderável romantismo entre encantos e escombros.
    O meu poema compensou a frase clichê dos poréns e perdoou os apertos do peito. Também prometi desvendar, até o final do inverno, seu acorde perfeito. O segredo do seu prato preferido agora já é trivial na minha mesa. Subordinei suas conjunções às minhas concessões temperamentais.
     No mais, a sombra do sol estende a tarde como um lençol enquanto o tempo se eterniza na janela do meu quarto. Já a varanda lá de casa, por sua vez, pretensiosamente só encomenda lua cheia quando alguém, de propósito, chega sem avisar...
     É certo que a canção que eu fiz não faz calar as palavras. O irreversível imaterial desafia as regras da poesia e você, certamente, não foi feito para caber no papel nem se resumir num post só. Mais fácil os advérbios variarem que os adjetivos contemplarem toda a inspiração dessa hora.
     Perdi o repertório. Esqueci a letra em público e como conjugar os verbos mais sérios quando você me olhou e, à beira do abismo, me fez rir das perdas da semana passada. 
        "Não é nada, não é nada!”, batuquei desajeitada num tom de samba e piada.
       Por fim, brincamos de desafinar o coro chato dos descontentes à nossa volta e finalizamos improvisando uma prévia das 7 maravilhas do lugar imaginariamente inventado por nós:


“Sorvete de menta com chocolate;
-Férias com pijama surrado;
-Relógio despertando domingo só pelo prazer de desligá-lo e dormir sem culpa;
-Bossa e vinho tinto;
-Jazz e sábado à noite;
-Música de Chico à dois;
-O céu como teto.”

     Acabei ficando crédula de uns dias para cá.

sábado, 19 de junho de 2010

Imortal

     Faleceu nas Ilhas Canárias, ao lado da família,  numa tarde do verão europeu em meados de junho de 2010, o escritor português José Saramago.
     Desde essa notícia, restou-me uma inconsolável sensação de orfandade. Os escritores deveriam ser terminantemente proibidos de morrer.
     Como lidar com a angústia de nunca mais poder pousar as mãos sobre a criatividade de alguma nova produção literária do escritor? O que fazer sem sua prosa e seu poder de recriar a vida pelo dom alquímico das palavras?  Como acostumar-me sem os abalos sísmicos de suas críticas ácidas dirigidas aos desatinos capitalistas ou à parcela emburrecida das esquerdas?
     Recordo-me, nesse instante inominável de luto e nostalgia, dos caminhos que percorremos juntos no meu primeiro contato com sua obra aos 18 anos lendo "Memorial do Convento". Era como se ele me pegasse pela mão levando-me a conhecer os bastidores do século XVIII. E, assim, tive a melhor aula de história da minha vida. Agora, resta-me apenas um memorial de saudades...
     Lembro-me do dia em que entrei numa livraria ansiosa por adquirir um de seus lançamentos, o livro “As Intermitências da Morte”. Em processo de descoberta dos encantos da arte, a voracidade da jovem leitora foi detida pelas barreiras financeiras que, ainda hoje, insistem em limitar a democratização da literatura. Trinta e cinco reais custava o exemplar, e isso era tudo que eu não podia pagar. Voltei para casa sentindo-me vilipendiada, como se negassem a mim o legítimo direito do acesso à cultura. Tive de relevar a “pressa” até poder encontrar o livro, tempos mais tarde, em alguma biblioteca pública. 

     E salvem as bibliotecas da extinção e as abarrotem de  Saramago, por favor! 

     Hoje, cinco anos mais tarde, percebo que minha estante não esconde a predileção pelas narrativas longas e densas do escritor português. Antes de adormecer, pensei:

     - Por que não retirar as “Intermitências da Morte” da estante? A forma mais interessante de celebrar a vida e a obra de um escritor é reler alguns trechos de sua prosa.

     “Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”
As Intermitências da Morte, 2005.


     Decidi, então, entrar de novo no universo de reflexão existencial de Saramago e me permiti eternizar o autor pelo poder de sua obra. Faça o mesmo. Façamos, sempre!

[Conheça também o espírito blogueiro da Fundação José Saramago em http://caderno.josesaramago.org/]

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Monólogo particular

     Corta a arma a espera de cumprir seu fim. O fio da navalha ensaia mais um discurso diário de lamentos. Cinco minutos dedicados a um monólogo particular de queixas solitárias. Menos do que precisaria, certamente.
     Choros de dores não ossificadas, sem rosto definido, alojadas num lugar que não aprendeu a nomear. Sofrimentos sem motivos claros à espreita de alguns ares ensolarados pra variar. Quem sabe na próxima estação, insiste a se perguntar?!
     Histórias ancoradas, já um pouco cansadas de imaginar felicidades dedilhadas que nem sequer imaginou compor. A corda, o laço e o nó não desataram as duras amarras que ajudaram a impor.
     Menina, ainda, refugiou-se num cantinho escuro para soluçar as mágoas do não-acordo. Adormeceu ali entre papéis, promessas, tintas, poucos sonhos e saudades que, naquela data, decidiu esquecer. Não se enganaria, entretanto. Voltaria a acordar esperando o destino de noites marcadas para amanhecer. É um jeito de se manter sã, pelo menos até o momento de voltar a sorver-se nos velhos motivos aflitivos de antes.
     Por hora, contentar-se-á com alguma distração passageira. Quem sabe brincar de pintar a casa com cores de um entardecer melancólico de inverno. Distrair-se com a tristeza convidando-a para entrar.
     Mesa posta, talheres, copos e mais algumas minúcias que acabou esquecendo. De resto, só o detalhe das violetas tímidas na janela disfarçando a falta de móveis no ambiente. Acabou se acostumando com um coração de pequeno espaço. Os avisos na porta da geladeira não escondem a natureza dos últimos dias. Longos, frios...
     Menos encorpados que um vinho tinto.
     Menos densos que um discurso de botequim.
     Só um pouco mais pretensiosos em reclamar outros sabores, ultimamente.
     Mais adocicados. De preferência agridoce no final para não enjoar.