segunda-feira, 23 de julho de 2012

Devaneios insones- Catavento

     O olhar desperto de Luísa resumia tudo. Ela se perguntava insistentemente qual a função da palavra se as distâncias nunca diminuíam por mais que se tentasse falar. Chegava até a postular a tese de que a linguagem, desde sua invenção como forma de expressão, nasceu para satisfazer nosso desejo de exibicionismo como se pudéssemos construir uma versão melhorada de nós próprios, na qual os fracassos aparecessem somente lá pelo vigésimo capítulo. Tinha certeza de que o excesso de educação e paciência não resistiria a uma marginal congestionada nem ressarciria a incompletude dos sonhos, muito menos aceitaria recuperar o tempo das noites mal dormidas por motivos fúteis. 
     O olhar de doce menina tinha também um jeito de passado, a melancolia de uma valsinha, uma rima casada com a cadência do bandolim, um dueto quase perfeito entre letra e carinho. Às vezes era também tão banal quanto um anúncio publicitário de xampu, ou um caderno de notícias inusitadas de domingo de um jornal que ninguém lê ou mesmo um desejo sincero de fazer arte até na desinteressante página dos classificados. Haviam dias em que era feliz gramaticalmente como se na raiz da palavra houvesse uma espécie de seiva substancialmente vital, noutros amanhecia amargurada como se tivesse tomado cicuta ou paralisada como se tivesse sido atingida por curare.   Não raro era igualmente passional feito uma canção de Caymmi e tão curiosa a ponto de se candidatar a uma bolsa de estudos cujo projeto de pesquisa pretendia estudar a desatenção que movia os tropeçadores de calçadas. Daria seu reino só para descobrir no que pensavam as minorias distraídas e atrapalhadas que produziam as mais espontâneas e poéticas cenas daquela cidade de agendas sempre tão abarrotadas e sérios compromissos profissionais.
     Nela se contradizia a clássica Lei da Física, a qual sentencia categoricamente que duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar. Em Luísa, contudo, habitavam, espacial e temporalmente, a criança que se comove com o cheiro de terra molhada no quintal de casa e a velha ranzinza que tem ciúme até das próprias panelas. Esses dias, inclusive, foi assaltada repentinamente pela lembrança do dia em que apelidou seu coração de catavento e riu até perder as forças quando o brinquedinho falhou por falta de pilha.
     Depois adormeceria cansada de existir, como há muito tempo não ousava fazer, ternamente reconciliada com suas próprias contradições. Por fim, a voz de Gal Costa ressona no despertador e ela acorda espreguiçando ao som de "João Valentão", cheia de bons modos como se fosse uma princesa de contos de fadas. 


 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Falso juramento

E que haja poesia, acima de tudo, apesar dos desencontros.
E graça, abaixo de todos, nos mais variados desassombros.
Que eu escreva enquanto houver espaço
e minta com a convicção de um bom ladrão.
Como se no meio da estrada nem quisesse ter
pernas o suficiente para correr.
Como coisa que não se fala
mas dentro de alguém se cala
feito um estampido ensurdecedor.
Há tempos eu soo mais do que sou.
Nesse viés de tanto revés,
mais seguro meter os pés
nas tantas ressalvas que o mundo faz


[Segundo exemplar da Série: "Férias recuperando a criatividade da autora" ]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Devaneios insones- A raiz quadrada de 19

     Era, provavelmente, uma equação insolúvel ou uma segunda-feira dando início a um inverno insuportável. Luísa parecia ter saído de um filme francês do final dos anos 90 ou de alguma canção romântica daquelas bandas alternativas do rock inglês dos anos 80. Para ela, no entanto, tudo não passava de um prenúncio de julho antecipando seus incômodos sentimentos.
     Naquela noite, se pudesse, a jovem daria um forte e emocionado abraço em Newton pela genialidade expressa na Lei da Inércia. Qualquer movimentação nessa altura da vida seria profundamente agressiva e contraditória. Já estava decretado o fracasso pessoal e nada que fizesse poderia mudar o inexorável destino daquele prolongado inverno. Fingiu anoitecer sentada na cama com os olhos semicerrados e olhou para o abajur queimado em cima do criado mudo e para a caixinha de música que há mais de um ano esperava conserto. As fotos no mural da sala também dispensavam qualquer explicação mais detalhada sobre a sua personalidade vazia. O resto do cenário se resumia num quarto bagunçado em uma noite de poucas estrelas e sem lua, iluminado apenas por uma luz longínqua vinda de um dos edifícios daquela cidade de sucessos empresariais e fracassos humanos. A única distração era pensar numa revolução em causa própria: destruir os ponteiros do relógio para remediar seus constantes atrasos.
     Para o café da manhã, Luísa preparou leite com café (sua especialidade culinária predileta) e bolacha de água e sal, aquela mesma com gosto de nada que já chega esfarelada só de ser olhada na prateleira do supermercado. De pijamas, ainda, sentou-se na frente do computador, após incontáveis meses sem uma inspiração sequer, e reiniciou, pela enésima vez sem uma inspiração sequer, a primeira página do romance que pretendia escrever desde a adolescência. Difícil era não matar o protagonista na primeira linha, fugir do desespero que sentia após concluir o terceiro diálogo do texto e de citar fatidicamente a “Metafísica do Amor / Metafísica da Morte” de Schopenhauer já no primeiro parágrafo. Mas, para que insistir tanto nos detalhes estéticos ou na procura de um discurso maduro, se tudo sempre acaba em folhetim popularesco com a sobriedade da rima alcoolizada comicamente na sarjeta de uma poesia tão pueril e insegura?
     A única conclusão a que Luísa conseguiu chegar era de que, se um dia escrevesse sobre o amor, o faria na forma de contos dramáticos e curtos para não cansar o leitor. Isso porque, quando se chora, as palavras cumprem a sina anárquica e autoritária de romper a arrogância do silêncio sem pedir licença aos ouvintes. Desistir é também uma forma de guardar o que nunca se teve. De resto, só faltava escrever que o amor não é um quadrado perfeito, tem gosto de café amargo e um jeito sem graça e bobo de rock do passado.