
O fato é que nunca precisei ocultar as entrelinhas, a lembrança que o poema me traz, a explícita autoria para o verso. Nem teria talento o suficiente para disfarçar. O desejo, com data e hora, já ficou confesso num rascunho de papel em lugar de fácil acesso. O que sei até agora é que o corpo reclama o encontro, a presença tocável, o calor da voz, os dedos quentes entrelaçando nos meus quando a noite está fria, a rua comprida e assunto teima em acabar no meio do caminho.
O jeito é saber lidar com o que sobrou da semana para decifrar os últimos acontecimentos. A ameaça de verbalização, o tremor na fala quase sussurada, o gesto inacabado, a beleza da tristeza entremeada de risos e autocrítica. Chego a pensar que o amor de Pierrot só é comovente e belo porque é igualmente triste e improvável.
Depois da viagem de alguns dias, o retorno para casa. Só me resta reunir resignadamente as correspondências na caixa do correio como quem retoma a banalidade do cotidiano. A rotina já imprimiu compulsoriamente suas cobranças e me obrigou a abastecer os armários da casa. Na simplicidade da lista de compras, volto a sobreviver de versos longos e motivos breves. Deixo o supermercado, após o hábito antigo de fazer compras à noite, com sacolas plásticas fartas de realidades que desconheço. Só espero que, mesmo embrulhada de diferentes modos, a felicidade me venha sempre, ainda que em medidas menores.
[21:00 horas, noite de quarta-feira de cinzas, a autora configurando memórias em meio a afazeres domésticos ao som de "Samba da Benção" do mestre Vinícius de Moraes]
Nenhum comentário:
Postar um comentário