quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sobre setembros


O tempo tem uma espécie de soberania incontestável.
Em sua genética incalculável e natureza indomável,
age desafiando os ensimesmados herméticos
a contestar a própria previsibilidade matemática.

Sua tarefa existencial é ensinar que o ponteiro da balança
não acusa o peso que se carrega na alma
mesmo quando se paga caro por excesso de bagagem
ou se cansa da longa estrada no meio da travessia.

O tempo dita as regras que você segue sem perceber...
Fala alto, grita com você!
Seja com olhos marejados
ou com um sorriso no canto dos lábios,
esfrega verdades na sua cara.
Depois, te liga perguntando à quais constatações você chegou.

Cada dia uma menina tornada adulta.
Barco navegante ao léu, bússola no breu.
Desatino, destino solitário em que sentido for.
Terra firme à vista por tempo provisório, analógico corretor.
Réu pedindo indulto, cobertor.
Tiro que erra o alvo, por um triz.
Rosa de amor, saliente cicatriz.

A partir de hoje, se o tempo quiser me enganar,
vai ter que me encarar de frente
olhando no fundo dos meus olhos...


sábado, 2 de agosto de 2014

Nova gramática da Língua Portuguesa

A normativa do amor é outra.

A inconstância do sujeito é predicado

e a palavra objeto é proibida

porque tudo em quem ama é insubordinável.

Se até os pronomes são relativos,

por que nossos advérbios não podem variar?

Se todo dia a gente perde ponto em concordância

por que é tão difícil acertar a regência?

Só é feliz quem faz da vida mais que um verbo intransitivo.

Discurso direto com dois pontos, parágrafo, coragem e travessão.

Quem sabe da vida o amor não seja aposto da espera

e a inconcordância verbal a sintaxe dos corpos numa perfeita oração. 

domingo, 13 de julho de 2014

Campeonato pelo primeiro lugar no pódio dos piores do mundo

     É irremediável brigar contra o tédio. Não adianta marcar audiência de conciliação, ensaiar despedidas marcantes, enumerar argumentos convincentes e qualidades pessoais, bancar discursos articulados, fingir corpo esguio e autocontrole. Todas as pessoas, por mais decididas e bem resolvidas que aparentem ser, desmontam a pose quando se encaram verdadeiramente diante do espelho do banheiro.
     É preciso reconhecer que, por mais libertador que seja rolar escadaria abaixo, os joelhos esfolados não escondem a continência do viver. Reconfortante é concluir que a coleção de cicatrizes que carregamos no próprio corpo têm muito mais da nossa história de vida que qualquer luxuoso álbum de fotos.
     Toda a minha admiração aos esfolados, aos perdedores, aos que encerram o mês no vermelho, aos desiludidos, aos últimos da fila, aos perdidos na confusão da cidade grande dos sentimentos, aos que ficaram de fora da festa de encerramento fazendo companhia para a lua. A gente joga no mesmo time! E se falarem por aí que a gente não vai muito longe dentro do campeonato da vida concordaremos silenciosamente com um sorriso tímido daqueles que exteriorizam nos lábios uma espécie de clarão interior por sabermos muito bem que nem sempre no pódio estão as melhores histórias.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Em comemoração ao dia do trabalho

A gente devia escrever mais poemas do que bilhetes de desculpas.
A gente devia assumir os erros com humildade e dividir os acertos com simplicidade.
A gente devia voltar para casa antes de o dia anoitecer.
A gente devia construir mais pontes do que cercas existenciais. 
A gente devia ser o nosso próprio patrão.
A gente devia se preocupar menos com a folha de pagamento do vizinho.
A gente devia instituir o happy hour como parte do expediente.
A gente devia acordar com a alma em prontidão para contrabalancear a cara amassada.
A gente devia ocupar o latifúndio do coração das pessoas e arar a terra com respeito.
A gente devia descansar a ferramenta do corpo antes dela adoecer.

domingo, 6 de abril de 2014

Abaixe o tom

O amor costuma ser grátis.
Jamais barato.
Todo volume máximo cai invariavelmente no esquecimento.
Rituais para lembrar são sussurros
somados a duas voltas completas na fechadura.
Mulher nenhuma coloca um disco de Chico à toa.
Pretensiosas todas, somos!
A mesma que inventa um sorvete de açaí pra te agradar,
envenena secretamente teu café na manhã seguinte.
Coloca teu coração ajoelhado no milho no fundo da sala.
Segundos depois, volta atrás.
Constrangida, suspende o algoz do castigo atroz
e oferece colo afagando teus cabelos com olhos redimidos de lágrimas.
Quando alguém fizer silêncio,
por favor,
ouça! 

sábado, 29 de março de 2014

Matéria-prima

Somos o contraponto da cidade convencional.
Somos o desejo que não se consome no fogo da lareira.
Somos o que os outros chamam de sorte.
Somos a contravenção de um bom ladrão.
Somos o que nos dá coragem mesmo tremendo de medo.
Somos a noite debruçando suas luzes sobre a calçada.
Somos os botões de fuga que acionamos diariamente.
Somos a criança de colo admirando a barba branca do pai.
Somos a sapatilha de pano nos pés da plebeia de alma nobre.
Somos os porres criativos dos amantes não correspondidos.
Somos o gordinho de óculos deslocado na festa do colégio.
Somos o diabético que namora a geladeira.
Somos o nerd perdendo a grande chance da vida por uma crise de asma.
Somos a poesia do branco-encardido e do amarelo-verdade.
Somos o que sussurramos inconscientes enquanto dormimos.
Somos as confissões que cravamos no tronco da árvore da vida.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Quem sabe

Ele não sabe, mas açaí é o alimento mais poético que existe.
Ele não sabe, mas os versos são desejos repentinos das madrugadas.
Ele não sabe, mas ironia e Nescau demais fazem mal igualmente.
Ele não sabe, mas a cidade continua fria mesmo aos 40 graus.
Ele não sabe, mas os nossos filhos vão ouvir Dylan.
Ele não sabe, mas a minha terapeuta me aconselhou um cachorro.
Ele não sabe, mas a bebida só é boa quando a companhia ajuda.
Ele não sabe, mas o céu tem as estrelas que se consegue colocar.
Ele não sabe, mas ontem foi sábado como se não tivesse sido.
Ele não sabe, mas a pior anemia é a inanição do afeto.
Ele sabe muito bem que o amor não tem encaixe perfeito, mas a poesia sim.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Pacto em 4 atos

1.
No último ato de um final de semana feliz,
numa dessas tardes quentes de verão,
conhecidas por instabilizarem o mais áspero dos corações,
fomos a uma roda de samba, a Vida e Eu.

2.
Ela (como sempre) misteriosa em suas insinuações sutis
repousa meus instintos mais inconsequentes numa sonora paz,
enquanto pacifica minhas dúvidas com afetos e conselhos
entre um gole e outro numa garrafinha de água com gás.

3.
Abre um guardanapo de memórias e promessas distantes
e me aponta uma dádiva em cada ponto de esperança dissipada.
Com o tempo as duras pedras alicerçam as inconstantes quedas
quando a gente brinca com a cara espatifada no pó da estrada.

4.
Dançamos de mãos dadas alguns passos erráticos e torpes.
Embriagadas de uma bebida forte e doce, na mesa de um bar qualquer.
E, de forma decisiva, fizemos de um brinde um pacto de vida.
A Vida e Eu...
Vamos seguir sem medo!

domingo, 12 de janeiro de 2014

Teoria literária para iniciantes

O poeta é o melhor socorrista! 

Estranhamente levado pelos sentimentos

num mundo em que nem mais aos travesseiros

se confessam antigos e furtivos segredos.

Vendedor de pipoca caramelizada,

ganha no grito a palavra-amiga,

que se dissolve na boca amada,

no breve instante de um suspiro.

Repentista de amor improvisado,

com o sotaque mais lindo,

que já se ouviu cantar pelas entrelinhas de cá.

Ele cede o último analgésico da bolsa

no dia que a enxaqueca marcou de voltar

e troca solavancos asfixiantes por rimas caprichadas.

Seu lirismo é tão revolucionário a ponto de

tomar um toddynho ao chegar na balada

ou oferecer a própria “bombinha”

em solidariedade ao asmático do lado.