sábado, 20 de outubro de 2012

Incertezas

O substrato da vida é essa areia movediça,
semi-líquida e quebradiça que a gente vê.
Ela te beija todas as manhãs com a boca molhada de café
enquanto você, docemente iludida, se convence
que não haverá mais nada tão amargo no restante do dia.
Depois te acalma elogiando teus cabelos negros e sedosos,
mas nem te avisa que vai chover logo mais tarde.
Ainda ri da alface entre teus dentes na hora do almoço
e do ônibus lotado no final da tarde espremendo tuas esperanças.
Por fim, te aperta e depois afrouxa
enquanto te embrulha de presente num papel de pão
que você deixou de comer para ouvir aquelas velhas desculpas.

   - “Calma. O tempo é senhor da razão”.

Aí, ela vira as costas e faz careta para você.
De graça, puxa o tapete do teu coração
e ainda tem a cara de  pau de colocar de novo
estrelas na sola dos teus pés.



domingo, 14 de outubro de 2012

Devaneios insones- Loser

   Luísa já desistiu de entender o tempo que o passar do tempo não resolve, a contrapartida do tédio e o resquício amargo que fica na boca toda vez que a felicidade é mais doce que um sorvete de creme. Talvez a vida seja mesmo mais cinematográfica do que os poetas imaginaram. Depois de pouco mais de 1 hora e 20 minutos, a vida volta insuportavelmente monotemática e continuará sendo necessário tirar a roupa molhada antes que o resfriado chegue bem como jogar a latinha de refrigerante e o saquinho de pipoca no lixo enquanto se acostuma com a claridade do dia do lado de fora da sala de cinema. Para ela, quem se esparrama muito incorre no risco de não se encontrar mais depois e, às vezes, seguir em frente, apesar de muito óbvio, significa nunca mais achar o caminho de volta, mesmo que o lugar atual nem seja assim tão bom a ponto de compensar a estadia. 
     Nesse ponto, Luísa achava que a metáfora do sofá se aplica com maestria para a vida. É lugar pequeno, as almofadas são indiferentes e mal cabem as próprias costas. Pelo menos de lá dá para contar os ladrilhos do chão como alguém que prefere pular amarelinha a desfilar numa passarela. Preferia a desculpa para deixar passar a hora de comprar o pão. E se o café da manhã já começava com atraso, para que esperar motivos para colocar a mesa do jantar? De que adianta um vestido lindo se a vida que se vive dentro dele não merece o decote sensual que ele tem?
     Luísa acreditava mais na existência do Bêbado do que da Equilibrista, mais que a própria Elis Regina na interpretação mais visceral dessa conhecida canção. Sentia uma grande identificação com todos aqueles que já frequentaram a rua dos perdedores, aqueles que quando não ficavam sozinhos no recreio estavam tropeçando em alguma escada do pátio, daqueles que se afogavam na piscina das próprias mágoas ou daqueles mais amigos da cantina do que da quadra de esportes. Só eles seriam capazes de entender sua falta de motivos para os brindes de hoje. Seu cartão da biblioteca tinha mais livros emprestados que lidos, mais eventos não comparecidos e mais sobrancelhas arqueadas que risos fartos. As lágrimas dos tempos do colégio foram cuidadosamente colecionadas em caixinhas coloridas para não secarem. Uma para cada dia da semana. Com carinho, catalogava também as ideias incompreendidas e nunca premiadas das feiras de ciência, a falta de ar com apenas duas voltas na quadra de vôlei, o prêmio de último lugar nas olimpíadas escolares, a eterna confusão entre direito e esquerdo e a atração do próprio pé por um buraco ou por uma casca de banana qualquer.
     A vida escolar também tem seus incompreendidos encantos. A ela, Luísa devia os joelhos esfolados, o vermelho vivo do boletim e o troféu de primeira substituta da última reserva do segundo time do esporte menos praticado pelos colegas do colégio.