sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Três ponto zero

Aniversários costumam exacerbar movimentos pessoais de interiorização. É como se a proximidade da data que representa simbolicamente o encerramento de um ciclo de vida para o início de outro nos obrigasse a uma caminhada por pedregulhos, a um mergulho em águas subterrâneas, a travessias por pontes móveis na direção de destinos desejados apesar de incertos.

Acordo de repente com 30. E por mais que possam parecer pesadas três décadas, não apazíguo minhas inquietações. Continuo a mesma menina que tinha medo de perder-se ao sair de casa, que chorou copiosamente na primeira vez que viu um passarinho caído no chão com a asinha quebrada sendo devorado por formigas impiedosas, que se interessava pelo universo paralelo dos tímidos mais impopulares do recreio ou que brincava de dar chás curativos às bonecas adoentadas.

De forma que tudo até aqui tem muito da companhia de Clarice nas intermináveis viagens de ônibus, do consolo musical de Chico naquelas derrotas duras da vida, das vezes que imaginei Vinícius lendo poemas insistentemente esperançosos me arrancando dos clichês pessimistas, do samba de Noel que me tirou tantas vezes da cama, do sax de Chet Baker que despistou a insônia, dos graves de Dylan que me fizeram enfrentar pias de louça suja ou os medos mais primários, do toddynho que me salvaguardou das hipoglicemias matinais, do vinho que me protegeu do excesso medíocre de lucidez, dos guardanapos de papel que acolheram as poesias repentinas, dos lixos que abrigaram as provas que não me serviram de nada, dos não-frequentadores dos primeiros lugares que me fizeram acreditar que as pessoas mais interessantes costumavam ficar de fora das festas apreciando as estrelas e da gramática que me ensinou que basta um ponto de exclamação quando a emoção é sincera.

Posso corajosamente estender simbolicamente a vida no varal e sentenciar que tudo até hoje fez muito sentido, até quando parecia não fazer. 

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Sobre feriados

Se há tempestade é porque você se foi.
Culpo a tua ausência pelos raios e trovões lá fora.
Permanece chovendo por horas a fio.
Frio. Muito frio.
Voltarás antes do amanhecer?
Depois de incontável tempo o sol brilha de novo.
Contradições montam um arco-íris no céu
me fazendo esquecer por um momento da tua partida.
Será um bom presságio simbolizando o teu regresso?
Uma chuva fina de lembranças ainda cai no nosso jardim
garoando na roseira que plantamos juntos ano passado.
Duas rosas novas desabrocharam.
Os passarinhos também acordaram mais cedo hoje.
A vizinha grita para as crianças não se atrasarem para o colégio.
Pessoas fingem ser felizes com trabalhos monótonos.
Engravatados cumprem a triste sina do impiedoso relógio.
Amanheço feliz, só que pela metade.
De repente, toca a campainha da sala...
A felicidade está de volta.
Voltastes?
Já é feriado no meu coração!

domingo, 29 de março de 2015

BR 365

O amor é uma espécie de ônibus leito
com espaço para você esticar as pernas do coração.
Vive alertando os outros para os perigos da trombose,
mas não isenta ninguém dos outros riscos que na viagem se corre.

É uma rosa por cima da dureza do chão.
O intervalo no meio da canção.
A rima pop que termina o refrão.
O adjetivo carnal no meio da oração.

O amor é o desconto que a vida dá
ao correntista endividado do mês
que não tem medo de se hospedar.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Manifesto de Ano Novo

Se o ano novo é tempo de rever prioridades e metas traçadas, ainda mais importante seria estabelecer PRINCÍPIOS, afinal de contas a eles recorreremos sempre que precisarmos rever nossas rotas ao longo dos próximos 365 dias. Torná-los públicos é uma forma de dividi-los com mais alguém e aumentar meu compromisso com eles...

1-Conhecimento é poder. Só tem sentido se gerar liberdade, autonomia, empoderamento,  consciência crítica, auto-conhecimento e espírito de coletividade. Tratar informação como propriedade particular data de épocas medievais.
2-A beleza é um conceito em constante mutação. Não é à toa que a maioria das pessoas que mudaram o mundo nos últimos tempos estava totalmente fora dos atuais padrões.
3-Lugar de mulher é no lugar que ela desejar estar. Enquanto o machismo e o patriarcado estiverem arraigados na política e na cultura violentando, oprimindo e matando mulheres, o feminismo continuará sendo necessário.  
4 – Deus não é um sócio que fica assinando “cheques em branco” para todos os lados. Os significados mais profundos transcendem as tradições religiosas. A fé mais bonita é aquela vela acesa que não causa alardes, os joelhos dobrados também ensinam que a humildade é causa urgente e a misericórdia é o que mais nos aproxima do coração de Deus.
5 - O mundo é muito maior do que o instagram mostra e Mark Zuckerberg não nos conhece suficientemente para elencar os fatos mais marcantes do nosso ano. Se por um lado tudo é fotografável, por outro lado ninguém quer exibir tragédias coletivas ou individuais. Se o melhor das ambigüidades humanas não está nas redes sociais, recorramos, então, aos livros, aos filmes, à música e às artes plásticas.
6 – A biologia do corpo nem sempre respeita a ordem mandatória dos ciclos circadianos. Se a vida moderna nos trouxe males, também nos permitiu escolher rotinas e estilos de vida. Estranho é quem não admite que a ferramenta do corpo também precise descansar.
7- O pior mal é viver sem pensar. O piloto automático é a falsa promessa de um vôo sem turbulências. Apesar de a vida ser gratuita, ela exige que ninguém fique sem assumir o protagonismo do próprio volante.
8- Um mundo melhor passa necessariamente pela empatia. Nada pior do que fingir que a dor alheia não nos afeta.