O dia de faxina
acabou sendo uma mera desculpa para viajar nas memórias que as paredes da
casa contavam.
Nas mãos, os
rascunhos antigos da tentativa hilária de escrever um romance sobre a história
de um gago que sonhava ser locutor de radionovela. Nas gavetas, as inúmeras indecisões
registradas em agendas guardadas dos últimos cinco anos. Seria saudável tamanho
apego à vida poeirada que aqueles cadernos contavam? Em todo caso, preferi deixá-los nos seus devidos lugares.
Vi a mulher dos livros de Clarice, a cara diminuta e existencialista do
quarto de uma jovem de vinte e poucos anos, a iniciante poesia-conflito. Tudo o que me deu nome, sobrenome e endereço.
Não há como
renegar a estranha e intrínseca vocação ao ridículo, ao patético humano, a esse
incorrigível e convicto discurso que sustenta a poesia nas horas em que a vida
se torna inacreditavelmente inapropriada. Essa sensação assumida de que posso
tropeçar a qualquer momento, de não saber cantar, não saber dançar, de estar a
um milímetro de uma gafe, a um suspiro de um escorregão, a um segundo do
despertador tocar na melhor parte de um sonho bom.
Estava ali as lembranças de quando amar foi sede e fome sem remédio e sem consolo. Quando nem o terapeuta acalmou o choro
das inquietudes mais insólitas. Quando o limite foi mais imperativo que a
possibilidade. Quando a boca calou, o pé doeu, a maquiagem borrou e corpo
perdeu a elegância. Essa, assumo, já bastante apagada desde os tempos da infância.
Por um breve
instante restou somente eu e aquela imensa solidão sartriana que o filósofo se
referia quando alguém tem a si mesmo nas mãos e pode olhar-se através das
próprias escolhas. Um contentar-se descontente, inseguro, certas vezes ligeiramente crédulo.
O eu e suas
virtuosas contradições solitárias. A inatingível e filosofal busca por uma
essência coerente, ainda que aristotelicamente dividida entre acertos e erros.
Enfim, apronto
delicadamente a cama para dormir como quem faz um ritual simbólico de
renascimento, de identidade reconciliada. Deito exausta com uma sensação
inédita de paz...
[Vencendo a insônia.
Das tripas, coração!]
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