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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Identidade

      O dia de faxina acabou sendo uma mera desculpa para viajar nas memórias que as paredes da casa contavam.
     Nas mãos, os rascunhos antigos da tentativa hilária de escrever um romance sobre a história de um gago que sonhava ser locutor de radionovela. Nas gavetas, as inúmeras indecisões registradas em agendas guardadas dos últimos cinco anos. Seria saudável tamanho apego à vida poeirada que aqueles cadernos contavam? Em todo caso, preferi deixá-los nos seus devidos lugares.
     Vi a mulher dos livros de Clarice, a cara diminuta e existencialista do quarto de uma jovem de vinte e poucos anos, a iniciante poesia-conflito. Tudo o que me deu nome, sobrenome e endereço.
     Não há como renegar a estranha e intrínseca vocação ao ridículo, ao patético humano, a esse incorrigível e convicto discurso que sustenta a poesia nas horas em que a vida se torna inacreditavelmente inapropriada. Essa sensação assumida de que posso tropeçar a qualquer momento, de não saber cantar, não saber dançar, de estar a um milímetro de uma gafe, a um suspiro de um escorregão, a um segundo do despertador tocar na melhor parte de um sonho bom.
     Estava ali as lembranças de quando amar foi sede e fome sem remédio e sem consolo. Quando nem o terapeuta acalmou o choro das inquietudes mais insólitas. Quando o limite foi mais imperativo que a possibilidade. Quando a boca calou, o pé doeu, a maquiagem borrou e corpo perdeu a elegância. Essa, assumo, já bastante apagada desde os tempos da infância.
     Por um breve instante restou somente eu e aquela imensa solidão sartriana que o filósofo se referia quando alguém tem a si mesmo nas mãos e pode olhar-se através das próprias escolhas. Um contentar-se descontente, inseguro, certas vezes ligeiramente crédulo.
     O eu e suas virtuosas contradições solitárias. A inatingível e filosofal busca por uma essência coerente, ainda que aristotelicamente dividida entre acertos e erros.
     Enfim, apronto delicadamente a cama para dormir como quem faz um ritual simbólico de renascimento, de identidade reconciliada. Deito exausta com uma sensação inédita de paz...

[Vencendo a insônia. Das tripas, coração!]

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