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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Sacudidelas 2

       O “Sacudidelas” é uma sessão desse blog com cara de consultório poético. Um despretensioso convite para se aconchegar ao divã da literatura através do exercício criativo e saboroso da intertextualidade.  
     Hoje, proponho que nossos analistas de luxo sejam Rubem Braga com a crônica “A casa” e Cora Coralina com o poema “Das pedras” (veja também o Sacudidelas 1, que trata da idealização amorosa, em http://portaodosfundos.blogspot.com/2009/10/sacudidelas.html) .

     Onde será que estão os tristonhos gritando seus amores não correspondidos? Onde eles teriam se refugiado para escrever seus versos ridículos? Em qual sobrado habitam?

     Quem sabe Cora esteja mesmo certa. Após chorar a demolição das frágeis paredes de nossos sobrados interiores, talvez seja possível erguer no lugar um castelo de aprendizados que atribua algum sentido ao que vivemos. Há como superar de forma sábia o absurdo existencial  e suscitar versos em meio ao cotidiano da dor? Cora diz que sim. 

      Está posta a difícil e diária escolha de cultivar um canteiro de flores que seja mais encantador que o jardim das acomodadas lamúrias. Vale a pena tentar, mesmo que nosso plantio seja de flores “amarelas e medrosas” (como diria Drummond) de tanto medo de ser feliz. 



A casa
Rubem Braga


Outro dia eu estava folheando uma revista de arquitetura. Como são bonitas essas casas modernas; o risco é ousado às vezes lindo, as salas são claras, parecem jardins com teto, o arquiteto faz escultura em cimento armado e a gente vive dentro da escultura e da paisagem.
Um amigo meu quis reformar seu apartamento e chamou um arquiteto novo.
O rapaz disse: "vamos tirar essa parede e também aquela; você ficará com uma sala ampla e cheia de luz. Esta porta podemos arrancar; para que porta aqui? Esta outra parede vamos substituir por vidro; a casa ficará mais clara e mais alegre." E meu amigo tinha um ar feliz.
Eu estava bebendo a um canto, e fiquei em silêncio. Pensei nas casinhas que vira na revista e na reforma que meu amigo ia fazer em seu velho apartamento. E cheguei à conclusão de que estou velho mesmo. 
Porque a casa que eu não tenho, eu a quero cercada de muros altos, e quero as paredes bem grossas e quero muitas paredes, e dentro da casa muitas portas com trincos e trancas; e um quarto bem escuro para esconder meus segredos e outro para esconder minha solidão. 
Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto bem sossegado onde eu possa ficar sozinho, quieto, pensando minhas coisas, um canto sossegado onde um dia eu possa morrer. 
A mocidade pode viver nessas alegres barracadas de cimento, nós precisamos de sólidas fortalezas; a casa deve ser antes de tudo o asilo inviolável do cidadão triste; onde ele possa bradar, sem medo nem vergonha, o nome de sua amada: Joana, JOANA! - certo de que ninguém ouvirá; casa é o lugar de andar nu de corpo e de alma, e sítio para falar sozinho. 
Onde eu, que não sei desenhar, possa levar dias tentando traçar na parede o perfil da minha amada, sem que ninguém veja e sorria; onde eu, que não sei fazer versos, possa improvisar canções em alta voz para o meu amor; onde eu, que não tenho crença, possa rezar a divindades ocultas, que são apenas minhas.
Casa deve ser a preparação para o segredo maior do túmulo.



Das Pedras
Cora Coralina


Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

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