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terça-feira, 18 de outubro de 2011

Crônica inaugural

     Amigos,
tenho o imenso prazer de compartilhar com os leitores desse blog uma espécie de alegria inaugural. Aqui está uma grande parcela da minha identidade autoral em construção: um olhar atento sobre o cotidiano como matéria-prima para o fazer literário.  
     Publico na íntegra a minha crônica intitulada “Sobre o poder de poetizar: sedução e encantamento” presente no livro “O Companheiro Indispensável”, lançado na especialíssima noite de hoje pela Editora da Universidade Federal de Uberlândia (EdUFU).
      O estar-no-mundo é um fascinante percurso poético. Recorramos a ele. Sempre. 
Patrícia 
Sobre o poder de poetizar: sedução e encantamento
     Sinto as palavras, mas elas não me pertencem. São atributos a que os poetas se entregam. O livro, essa entidade que ora repousa sobre as minhas mãos, revela sabor de mistério, agora palavrificado. O que, no momento, é verbo, antes fora realidade inacabada em constante luta entre reflexão, significado e forma. A frase, agora verso, antes pensamento inquieto.
     A pauta parece pronta. Frutificou o vocábulo antes flor. A letra é leve. As palavras, com ares preguiçosos, escondem-se traiçoeiramente no texto só para termos a chance de desvendá-las como quem revela, aos poucos, um segredo de sabedoria milenar.
    Ouço os poemas: existe uma sonoridade neles que transcende a palavra escrita e me comunica o que parece fora do alcance de qualquer tentativa de verbalização. Há uma sensação de como se eu, pobre leitora, pudesse apropriar-me de uma expressão lírica pelo simples desejo de querer ter falado aquilo que leio, mesmo sem nunca ter dito. Como se compusesse uma melodia sem nunca ter aprendido a cantar. Como se o mundo tivesse ficado melhor pelo simples fato de alguém o ter imaginado mais poético. Tenho a impressão de serem minhas as palavras ditas por outra boca. Uma espécie de salvação, de experiência mística, alquímica, atemporal.
     Desde cedo, aprendi a amar os poetas, a recebê-los em minha casa e a tomar com eles um chá. Sempre foram amigos, muito embora nunca tenha me encontrado pessoalmente com nenhum deles. Mas não tenho dúvida: eles estão muito próximos. Na minha mochila ou no meu quarto, elegantemente posicionados na minha estante. Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Cora Coralina, Ferreira Gullar, Mário Quintana, Rubem Alves, Adélia Prado... e tantos outros que um dia me encontraram e resolveram deixar comigo alguns manuscritos raros da sensibilidade humana. De Cecília, herdei o tempo nublado de solidão, silêncio e mistério. De Quintana, os quintais da irreverência. De Cora, a cor rústica da lenha ardendo no fogão. De Gullar, o preço do feijão. De Rubem Alves, uma reverência devocional pela vida. De Pessoa, a diversidade dos nomes. De Drummond, a procura da poesia. De Adélia, a fome.
     Nos últimos tempos, minha maior companheira tem sido Adélia Prado. Talvez ainda uma escritora pouco conhecida pelos leitores de poesia. Mulher fina, de natureza simples, mineira nascida num lugar onde se tece para não entristecer, sinuosa como as montanhas de sua terra-mãe. Na poesia adeliana, recolho o que parece me faltar, amenizo a dor que nem a medicina me ensinou a nomear e descanso da densidade científica do que obrigatoriamente tenho de conhecer.
     Adélia é leve e, por isso, a levo sempre. Ela é o único peso da minha bagagem que não estraga o prazer da viagem. Vitral que me revela o mundo com nuances jamais pensadas. Portadora de uma experiência religiosa estética e delicada capaz de recuperar o viço do que já parecia seco de tanta incredulidade existencial. Maternal como colo que acalenta o filho em uma noite fria de inverno. Nela, o cotidiano não tem amargura, só uma alegria contida, sem ilusões, meio santa, meio doida. O almoço da sua casa é trivial, como na minha mesa, mas nunca falta o tempero de uma musicalidade inspiradora, própria de quem se entretém com as felicidades miúdas que a vida proporciona a quem a aprecia com a devida calma.
     Adélia tem sabor de recordação. Hoje, a poetisa mineira trouxe raios luminosos que me transportaram para um tempo solar. Memórias de infância que biblicamente me curam do desejo de “ser grande”.
     Minha casa também tinha as cores do amanhecer e mamãe sempre poetizava o prato do dia. Era só arroz, feijão-roxinho e molho de batatinhas, mas nunca faltou cantiga na cozinha, hortinha de couve, jabuticabeira no quintal, nódoa de romã na roupa e joelhos esfolados. O simples ato da leitura tem o poder de evocar o arquivo morto das saudades como se pudesse eternizá-lo. Não fui eu que busquei a coincidência, ela veio por si mesma. Num instante, a jovem, de semblante sério e responsável, esqueceu-se dos desconcertos da vida e teve vontade de voltar ao tempo de ser criança e de balbuciar pequenas alegrias.
     Nas histórias de suas tias, comadres, amigas e vizinhas, Adélia me segura pela mão e leva-me a conhecer o sagrado e seus meandros divinos. Coisas que Deus preferiu confiar aos poetas, confidenciar às mulheres, de preferências às mães. As tortuosidades são mais bem compreendidas pelos corações que puderam viver a experiência de gerar alguém.
     Adélia é realidade geradora. É gente que recria o dia sem economizar no ato de amar, mesmo sendo o amor com poucos enfeites, magro e feinho. Ela descobriu que Deus mora fora dos limites de uma definição fria e racional, que Ele habita na “terceira margem do rio”, como um dia, enigmaticamente, declarou Guimarães Rosa.
    Mas Adélia não tem pretensões de mudar o mundo. Quer apenas o direito de ser cotidiana e de recolher, atrás das montanhas de Divinópolis, nos olhares solitários, nas bocas emudecidas, nos amores não provados, nas cores pouco tocadas, o material poético para sua arte, o grão de seus verbos, a rima de seu canto, a raiz de seus pronomes, a linguagem metafórica do seu discurso primoroso.
     A mim, simplesmente basta saber que ela existe e que misteriosamente tem visitado a minha casa, ora aquietando meus dilemas me fazendo adormecer, ora ancorando meu coração de vez no desassossego. Desconcertada, luto contra o sono para ler um último verso do poema “Filhinha” do livro “Oráculos de Maio”: “Deus não é severo mais. Suas rugas, sua boca vincada são marcas de expressão de tanto sorrir pra mim.”
     Apronto-me para virar a página. Mas virar para quê? O mundo poderia acabar nessa hora que eu estaria completa, assombrada com tanto poder de sedução e encantamento. 

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