domingo, 6 de dezembro de 2020

Segunda descoberta mais esperada da década depois da vacina

João anda por aí com um coração artificial esperando transplante cardíaco.

Fátima vive há cinco anos com o pulmão de Margarida,

que morreu num acidente de carro no feriado de carnaval.

Rose também enxerga graças às córneas de Amélia,

que enfartou num dia de semana sozinha em casa.

Lúcia comemora estar livre do câncer de mama,

depois de cinco anos neurotizando suas dores na lombar.

Maurício aplica insulina há quatro décadas

e jamais imaginaria chegar tão inteiro na terceira idade.

Samuel nasceu prematuro e agora comemora a aprovação

no vestibular mais concorrido do país.

Clarice é uma criança que recebeu tratamento intrauterino

e hoje entusiasma a todos com suas conquistas motoras e cognitivas.



Convenhamos...

Grandes avanços foram proporcionados pela medicina aos humanos.

Porém, a próxima grande invenção será tratar males sem prescindir dos orgasmos.

Ansiosos e deprimidos estão na lista dos voluntários interessados

em participar dos testes promissores dos novos medicamentos.

Os pacientes relatam que querem abrir mão dos ataques de pânico e das crises de ansiedade

sem que precisem, em contrapartida, ficar com a libido de uma pteridófita.

A imprensa noticia que os estudos estão em fases avançadas.

Se assim for, o Nobel da década já tem dono. 

E, provavelmente, ganhará a provocativa citação de um poeta latino-americano,

que ironicamente morreu na mesma década de lançamento do Prozac.   

“Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
Felizes os felizes” 

Biógrafos nunca disseram que Borges tenha precisado tomar antidepressivos,

mas soube como ninguém extrair poesia como quem tira leite de pedra.

Felizes os lubrificados, 

porque sabem lidar melhor com as engrenagens difíceis da vida. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Desenlace

O amor é um cálculo que se hospeda nos seus rins

discretamente sem que você perceba.

Daí um belo dia resolve te abandonar, 

sem aviso prévio, migrando violentamente 

pelo ureter em direção à bexiga.

Uma pedra áspera de cálcio de alguns milímetros 

que despenca rolando montanha abaixo,

como Sísifo às avessas, 

desafiando sua empáfia de controle.

Te coloca em posição fetal

se contorcendo na cama

urinando sangue

enquanto você implora por analgésicos

associados com alguma coisa há mais

que te faça parar de vomitar.  


Drummond disse no livro mais erótico de sua obra, 

aquele que lhe faltou coragem de publicar enquanto estava vivo, 

que o amor, como braseiro, lhe dava, via orgasmo, 

a explicação do mundo. 

Desde então, quase ninguém mais pensa assim. 

Essa noite, por exemplo, 

me equivoquei de novo redondamente 

ao sonhar que te pegava no banheiro, 

quando fui acordada pelos gritos do vizinho pedindo socorro 

porque estava infartando no apartamento do lado.  


Quando eu digo “amor!” e você me responde com “hum?!”, 

o que nos garante que estamos falando da mesma coisa?


sábado, 7 de março de 2020

Declaração de Humor

Um grupo de pesquisadores decidiu fazer um experimento científico:
uma extensa revisão de documentos históricos para descobrir a origem misteriosa do amor.
Em qual contexto e língua havia sido escrita a primeira declaração de amor pela espécie humana? 
Teriam sido os gregos para superar complexos dilemas éticos?
Seriam os egípcios para se defender da inexorável morte?
Quem sabe os indianos para se aproximar de divindades inatingíveis?
Talvez os povos pré-colombianos para superar os desafios da altitude 
e entender melhor a dimensão cíclica da natureza?
Ou ainda os esquimós para se agasalhar do frio inóspito? 

Não, nenhum deles teve essa prerrogativa literária.
O amor havia sido pronunciado de forma inédita por uma mulher comum.
Dona Maria, aposentada e viúva, que aprendeu ontem a usar o WhatsApp.
Ela ficou encantada com a possibilidade de mandar um emoji de coração para o crush secreto.
Aquele que é seu vizinho há 40 anos, 
sempre a ajuda distribuindo presentes 
para as crianças do bairro nos domingos de Páscoa
e faz a melhor limonada que ela já tomou na vida.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Início de ano (novo)


O ano começou com uma folga triste e melancólica. Elaborei iniciativas para romper com o desamparo, mas recuei diante das filas intermináveis nos cafés e cinemas nessa época de férias escolares.

Ontem, passei mais de uma hora na livraria procurando solitariamente encontrar você em poemas e contos de amor. As florestas da Austrália se consumindo em chamas e o meu peito como broto verde ardendo em saudades do que a gente não viveu, como se as luzes do Natal ainda continuassem acesas cintilando desejos incandescentes dentro de mim. O mundo em pânico com receio de uma nova guerra e eu imaginando como solucionar nossos desencontros, como te enlaçar nos meus braços, como desarmar nossos medos, como desatar nossos nós, como encurtar a distância geográfica entre as nossas bocas, como aproximar o continente dos nossos sentimentos, como apaziguar nossas dúvidas e como selar um tratado de paz com essa imensa falta que você me faz.

O final de semana passou como uma piscadela juvenil. Muito provavelmente você nem irá ler esses escritos desmanchados de amor. Deve, penso eu, estar terminando o domingo num desses sofisticados cafés da cidade lotados de gente com um sorriso leve no rosto, enquanto eu estou aqui pensando se ainda vale a pena tirar o pijama antes que o dia acabe.