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sábado, 19 de junho de 2010

Imortal

     Faleceu nas Ilhas Canárias, ao lado da família,  numa tarde do verão europeu em meados de junho de 2010, o escritor português José Saramago.
     Desde essa notícia, restou-me uma inconsolável sensação de orfandade. Os escritores deveriam ser terminantemente proibidos de morrer.
     Como lidar com a angústia de nunca mais poder pousar as mãos sobre a criatividade de alguma nova produção literária do escritor? O que fazer sem sua prosa e seu poder de recriar a vida pelo dom alquímico das palavras?  Como acostumar-me sem os abalos sísmicos de suas críticas ácidas dirigidas aos desatinos capitalistas ou à parcela emburrecida das esquerdas?
     Recordo-me, nesse instante inominável de luto e nostalgia, dos caminhos que percorremos juntos no meu primeiro contato com sua obra aos 18 anos lendo "Memorial do Convento". Era como se ele me pegasse pela mão levando-me a conhecer os bastidores do século XVIII. E, assim, tive a melhor aula de história da minha vida. Agora, resta-me apenas um memorial de saudades...
     Lembro-me do dia em que entrei numa livraria ansiosa por adquirir um de seus lançamentos, o livro “As Intermitências da Morte”. Em processo de descoberta dos encantos da arte, a voracidade da jovem leitora foi detida pelas barreiras financeiras que, ainda hoje, insistem em limitar a democratização da literatura. Trinta e cinco reais custava o exemplar, e isso era tudo que eu não podia pagar. Voltei para casa sentindo-me vilipendiada, como se negassem a mim o legítimo direito do acesso à cultura. Tive de relevar a “pressa” até poder encontrar o livro, tempos mais tarde, em alguma biblioteca pública. 

     E salvem as bibliotecas da extinção e as abarrotem de  Saramago, por favor! 

     Hoje, cinco anos mais tarde, percebo que minha estante não esconde a predileção pelas narrativas longas e densas do escritor português. Antes de adormecer, pensei:

     - Por que não retirar as “Intermitências da Morte” da estante? A forma mais interessante de celebrar a vida e a obra de um escritor é reler alguns trechos de sua prosa.

     “Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”
As Intermitências da Morte, 2005.


     Decidi, então, entrar de novo no universo de reflexão existencial de Saramago e me permiti eternizar o autor pelo poder de sua obra. Faça o mesmo. Façamos, sempre!

[Conheça também o espírito blogueiro da Fundação José Saramago em http://caderno.josesaramago.org/]