O
olhar desperto de Luísa resumia tudo. Ela se perguntava insistentemente qual a
função da palavra se as distâncias nunca diminuíam por mais que se tentasse
falar. Chegava até a postular a tese de que a linguagem, desde sua invenção
como forma de expressão, nasceu para satisfazer nosso desejo de exibicionismo
como se pudéssemos construir uma versão melhorada de nós próprios, na qual os
fracassos aparecessem somente lá pelo vigésimo capítulo. Tinha certeza de que o
excesso de educação e paciência não resistiria a uma marginal congestionada nem
ressarciria a incompletude dos sonhos, muito menos aceitaria recuperar o tempo
das noites mal dormidas por motivos fúteis.
O
olhar de doce menina tinha também um jeito de passado, a melancolia de uma
valsinha, uma rima casada com a cadência do bandolim, um dueto quase perfeito
entre letra e carinho. Às vezes era também tão banal quanto um anúncio
publicitário de xampu, ou um caderno de notícias inusitadas de domingo de um
jornal que ninguém lê ou mesmo um desejo sincero de fazer arte até na
desinteressante página dos classificados. Haviam dias em que era feliz
gramaticalmente como se na raiz da palavra houvesse uma espécie de seiva
substancialmente vital, noutros amanhecia amargurada como se tivesse tomado
cicuta ou paralisada como se tivesse sido atingida por curare. Não
raro era igualmente passional feito uma canção de Caymmi e tão curiosa a ponto
de se candidatar a uma bolsa de estudos cujo projeto de pesquisa pretendia
estudar a desatenção que movia os tropeçadores de calçadas. Daria seu reino só
para descobrir no que pensavam as minorias distraídas e atrapalhadas que
produziam as mais espontâneas e poéticas cenas daquela cidade de agendas sempre
tão abarrotadas e sérios compromissos profissionais.
Nela
se contradizia a clássica Lei da Física, a qual sentencia categoricamente que
duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar. Em Luísa, contudo, habitavam,
espacial e temporalmente, a criança que se comove com o cheiro de terra molhada
no quintal de casa e a velha ranzinza que tem ciúme até das próprias panelas.
Esses dias, inclusive, foi assaltada repentinamente pela lembrança do dia em
que apelidou seu coração de catavento e riu até perder as forças quando o
brinquedinho falhou por falta de pilha.
Depois adormeceria cansada de existir, como há muito tempo não ousava fazer, ternamente reconciliada com suas próprias contradições. Por fim, a voz de Gal Costa ressona no despertador e ela acorda espreguiçando ao som de "João Valentão", cheia de bons modos como se fosse uma princesa de contos de fadas.
Depois adormeceria cansada de existir, como há muito tempo não ousava fazer, ternamente reconciliada com suas próprias contradições. Por fim, a voz de Gal Costa ressona no despertador e ela acorda espreguiçando ao som de "João Valentão", cheia de bons modos como se fosse uma princesa de contos de fadas.
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