Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou na feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se parecem os óculos sobre a mesa.
Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas?
Com algum ciclista tombado?
Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parecem mesmo?
E sinto que, enquanto eu não puder captar a sua implícita imagem-poema, a inquietação perdurará.
E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara ao meu Dom Quixote que uns óculos sobre a mesa, além de parecerem apenas uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois — Dom Quixote ou Sancho? — vive uma vida mais intensa e portanto mais verdadeira...
E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida.
Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor.
E agora?
Por enquanto, ante a atual insolubilidade da coisa, só me resta citar o terrível dilema de Stechetti:
“Io sonno um poeta o sonno um imbecille?”
Alternativa , aliás, extensiva ao leitor de poesia...
A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele.
E daí?
—Mas o melhor — pondera-me, com a sua voz pausada, o meu Sancho Pança —, o melhor é repor depressa os óculos no nariz.
QUINTANA, Mário, A vaca e o hipogrifo. Porto Alegre: Garatuja, 1977