sábado, 29 de janeiro de 2011

Subversão gramatical

O verbo se desfez dos objetos.
Direta ou indiretamente,
pouco a pouco, circunstanciou-se de projetos.
Discretos, modestos atributos de um sujeito oculto.
A sintaxe anda à procura
do significado que transcenda o singelo vocábulo.
Fruto de estação, antes flor de rara ocasião.
Espera também o acento, o grifo, o ouvido atento do leitor.
Conjuga-se:
no tempo, irregular;
na pessoa, plural;
num imperativo de modos,
na abstração mais-que-perfeita da imaginação.

A linguagem figura soberana no centro do salão
enquanto encarrega-se de fazer:
a metáfora perder a hora,
a hipérbole destemer o desejo
o anacoluto verso endireitar-se,
a parte pelo todo,
o continente transbordar conteúdo.
O poema aprofunda o absurdo confesso,
sem falsa censura,
num paradoxal discurso diminuto
de gestos econômicos e sinestésicos.

Em desacordo com a moderna ortografia,
a regência concordou com a regra da exceção
como se a coerência não se importasse mais
em seguir os ditames pouco concessivos da razão.
Facultou suscinta a lição
sem "como" e nem "porquês".

O lúmen da alma do poeta,
ainda que severo ateu,
é deveras oração.
Ora rascunhada numa incoordenada lamentação.
Esta debulhada em lágrimas substantivas,
ainda resquícios de reduzida subordinação.
Ora, coletiva sublimação,
quase um locução adverbial de afirmação
com efeito de verdade.
De fato, verbo em permanente mudança de estado...
Subversão!

[A autora em franco devaneio gramatical]

domingo, 23 de janeiro de 2011

E por falar em cinema

    E mudando de arte sem, no entanto, trocar de assunto (entenda melhor vendo o post anterior)...

    Ciente de que os leitores de poesia são invariavelmente cinéfilos incorrigíveis (será que eu estaria enganada nessa convicção?), aproveito a ocasião para dividir o convite para assistir o filme “Uma noite em 67”. Trata-se de um documentário, lançado em julho de 2010, sobre a final do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record.
     O filme retrata as apresentações históricas no festinal dos garotos Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil e Caetano Veloso  além de um momento marcante de efervescência cultural do movimento tropicalista. Para aqueles que têm saudade de ver Os Mutantes no palco então, nem se fala. Está duplamente imperdível! 
     Aproveite o domingo, chame os amigos, sente-se no chão (ou no sofá, como queira...), coma uma pipoca e se transporte para a lendária noite de 21 de outubro de 1967.

Reedição- parte 2

Curta

 
Os jardins são meros enfeites cinematográficos.
Entre disfarces e holofotes,
os olhos não escondem a desolação.
Nem as flores tristonhas,
as cores fatigadas de tanta educação.
Vontade de bater em outras portas,
cortar outras cordas,
cantarolar outras notas,
aventurar outro eu.
Reverso, inverso, avesso de mim.

O curta-metragem adentra a madrugada.
Não há ainda linguagem que satisfaça a personagem.
Elegantes, as cortinas irão se abrir...
[No ar o afã de um querer inquieto]
...para as cenas do melodrama da vertigem.
[Cinema e teatro no divã da metalinguagem]
Ao vivo, meio improviso, no palco de um cenário alternativo.
Uma sala, uma mala, uma suposta calma.

Só as antíteses são levadas a sério.
Anti-herói, anti-horário, antipático, antiquado,
Antiquário, antivírus, antídoto, antimônio.
Se anjo, torto.
Se santo, louco.
Se fogo, alto.
Se vôo, aos poucos.

Horas passadas,
quase assadas em banho-maria de tão mornas.
Roteiro pela metade,
sem consistência de argumento,
quase uma desistência súbita
ou pedido de demissão sumária.
Sem rima, sem diária nem nada.
Peça fora do tabuleiro.
Palhaço sem picadeiro.
Samba sem pandeiro.
Agora, contentar-se-á com desfecho derradeiro.

O fracasso é discurso recalcado, enredo mal contado.
Fecha a conta e deixa alguém administrando o saldo.
Respeitável público, o sucesso de bilheteria é ali do lado.
Legenda em português, romance burguês, bem ao gosto do freguês.
Do lado de cá, a rima é pobre e desinteressante.
O mocinho é de esquerda, sofre de espinha no rosto e crônica timidez.
A atriz é baixinha e está fora de forma outra vez.
Quanto à história?
Nada de mais.
Só aquela que o instante fez.
Cotidiano possível, sem ensaios...
Bem menos arrebatador que um final feliz.

Curta-metragem, produção independente
Duração: alguns minutos de poesia-experimental
Gênero: melodrama
Ano: 2010.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Nos embalos de Elis

      Aproveito a onda musical das minhas férias e das últimas postagens do blog para recordar que há 29 anos Elis Regina nos deixava. A Pimentinha, como a apelidou o poeta-cantor Vinícius de Moraes, partiu no dia 19 de Janeiro de 1982. 
     Com uma voz pulsante, uma interpretação visceral e uma rebeldia que só os gênios possuem (só ela para esnobar uma composição do mestre Chico Buarque dizendo estar impaciente com a timidez dele), a cantora (intérprete-atriz) marcou gerações inteiras.
     Elis era mesmo muito afinada na vida.
     Quem sabe um dia ainda não escreva um Trilha Sonora "2” (veja o post anterior) só com versos em tributo à Elis. Fica aqui a promessa. Porque como diriam seus fãs de carteirinha (aliás, me incluo incondicionalmente nessa categoria): Elis é viva demais para estar morta.
     Deixo um trecho do programa Ensaio da TV Cultura, gravado por Elis Regina em 1973. Nesse vídeo, Elis canta a música “É com esse que eu vou” de Pedro Caetano.



     Vale a pena inclusive ver todos os vídeos, os quais deram origem ao DVD “Programa Ensaio- Elis Regina”, lançado em 2004. Trata-se de um primoroso trabalho de restauração de imagens e áudio feito pela gravadora Trama, de um dos filhos de Elis - João Marcelo Bôscoli, e que pode ser conferido no canal da Trama no youtube.



     E salve Elis no Samba, na Bossa Nova, na dose certa de MPB!

     Ela continua sabendo embalar nossas trilhas sonoras como ninguém!!!

Reedição- parte 1

Hoje o blog reedita o "Trilha Sonora". Esse poema já foi postado por aqui no início de 2010 e andou viajando por alguns concursos literários. Agora retorna um ano depois, todo reformulado. Em breve, novas reedições. 

Trilha Sonora

Na esquina com a Ipiranga e a Avenida São João,
de palavra em palavra, miudinho,
eu confesso:
“Gosto muito de te ver, leãozinho.”
Distraio caetaneando uma canção de ninar,
enquanto preparo um café até você chegar.

Com açúcar, com afeto.
De Todas as Maneiras, ele me chama de Beatriz.
De dia, Bárbara. De tarde, Luísa. De noite, Bailarina.
Só para fingir um Partido Alto e arrancar um Pedaço de mim.
Quem te viu, Quem te vê,
Bandolim.

O Tom dessa Bossa se RE-Nova
E o SOL da praia LÁ fora MI recorda
que nem o sussuro de João Gilberto pode acalmar,
nem Vinícius e Jobim iriam suportar,
tamanha Insensatez no ar.

Talvez eu combine mais com os ais de Caymmi.
Você, com a malandragem, o chapéu de palha e o terno branco.
Terno...
Irresistivelmente um Acalanto.

Mas Se acaso você chegasse
e de Lupicínio herdasse
a intensidade do Castigo
que, um dia, Elis cantou.
Só peço toda Maricotinha
ao Senhor do Bonfim
esse João Valentão todinho pra mim.
De bandeja num luau
ao som de Bethânia e Gal

Ah, quem me dera
Se Nas Curvas da Estrada de Santos,
você baixasse a guarda.
Eu provaria como Eu sou terrível.
Mais que Roberto e Erasmo num especial de domingo.

Ainda careço de Paciência,
à revelia de Lenine
e sobro em excentricidade e malemolência
feito o figurino e os agudos de Raul.
Só não me falta a proteção de Jorge,
do santo e do Ben Jor.
Num cantinho junto as sobras:
a dor de amor,
a viola de Paulinho,
a tristeza de Toquinho.

Do devaneio nasce Milton
e a Terceira Margem do Rio a me afogar.
Na janela o canto do Rouxinol
desce a Ladeira da preguiça devagar,
selando a Paz feito guitarra de Gil
e pintando as paredes da casa de Lilás
de um jeito que nem Djavan iria acreditar.

Para o refrão nós preparamos a melhor parte.
No carpete da sala,
no último volume,
o som atravessa a cidade rompendo o silêncio.
Não resistimos ao dueto.
Beijo no melhor sabor MPB

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Canção de bolero

     A onda quebrou no mar como um refrão de um bolero. A canção ficou incompleta como se esperasse a palavra mais importante de uma frase inconclusa. Mais parece uma declaração suspensa à mercê de um complemento arrebatador. A rima aguarda o retoque final, um pouco de percussão, cordas e o crivo da solidão. A imaginação, por sua vez, dança, sozinha, perdida no meio do salão.
     A voz grave e afinada é uma irrecusável proposta de epifania. Quase um convite a uma protagonista clariceana. Um pedido de resposta, um conto, uma incógnita interrogação. Como uma dança derradeira ou um poema de despedida, se preferir.
     A letra é triste, tanto quanto os personagens que a fazem comovente. Mente quem ainda não assumiu o trocadilho musical e ainda insiste em se vestir de alegria o tempo todo. Mesmo diante da melancolia que os olhos teimam esconder atrás da canção. Até o grande sambista já admitiu ser um pouco sozinho e usar o chapéu-panamá só nas horas que dá. Eu quero mais é que nunca me falte vestido rodado, bordados, flor no cabelo, sapatilha no pé e um bom lamento.
     As histórias têm cheiro de passado, emolduradas em cenas repletas de exageros e desejos. São românticos boleros que viraram relíquias em preciosos acervos que muitos já nem reviram mais.
     Adentro ao aroma de memória, ao sabor cítrico misturado a recordações e confissões que o tempo esqueceu de envelhecer. Continuam atemporais, atuais e fascinantes. Discos empoeirados na estante, ansiosos para serem revisitados por uma alma apaixonada e curiosa em busca de novos sons.
     Deixo recados gravados lhe convidando para um bolero. A música, eu já escolhi. O traje, também. Por favor, queira entrar. Abra a porta e curta a boa música.

[Sugiro a releitura desse texto acompanhada da música “Resposta ao tempo”. Uma composição de Aldir Blanc e Cristovão Bastos na voz inconfundível de Nana Caymmi, herdeira do talento do pai e uma das maiores intérpretes latinoamericanas de bolero. Uma tradição hispânica cantada em bom português.]