terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Gerundismo

Segurando na mão de nossa Senhora protetora das calorias pra ver se a balança começa mais minha amiga em 2011.
Tendo um papo sério e definitivo com todos os remedinhos do clube da insônia.
Rindo dos erros tolinhos desse ano de meia tigela.
Cantando samba para ver se eu desafino menos nos acordes decisivos.
Fazendo poesia pra ver se compensa a falta de jeito para o amor.
Prometendo cuidar melhor das minhas plantinhas, tadinhas!
Jurando não negligenciar mais meu café-da-manhã.
Querendo três doses a mais de paciência e uma garrafa inteira de coragem.
Provando da fome de querer mais e melhor de mim.
Pedindo tempo bom, sol, praia e água de coco pra minha alma.
Assumindo a vocação de bobo da corte.
Reconhecendo que sou muito cínica para ser sensual.
Questionando algumas verdades estabelecidas, algumas mentiras também.
Calculando menos para diminuir os prejuízos.
Focando na distração e pulando amarelinha com os obstáculos.
Imaginando enquanto os olhos não vêem.
Começando a lição básico 1 de uma escolha profissional cheia de sinuosidades.
Brigando diariamente com a parte sádica do peito.
Abraçando a loucura insana de achar que o mundo ainda será menos sério.
Caindo a ficha que o ego e o superego definitivamente não se entendem.
Aconselhando em alto e bom tom a parte surda do coração.

[Uma lista de boas intenções para 2011... Faça a sua também, caro(a) leitor(a)!]

sábado, 18 de dezembro de 2010

Lá do mar, lado teu

Vejo sedutor o amor chamar
Parece lindo o poema á beira mar
A alma reclama aquela inspiração
Sem saber se depois da entrega vem sossego ou sofreguidão.

Imagino a tarde com a cor que seus olhos roubaram do mar
E pinto minha timidez com a intensidade de matar a sede
Que faz esse estado insensato
De boca seca, de pernas bambas
De pele fria, pulso arrítmico e falta de ar

Guardo o lirismo em fase de ebulição
À revelia da razão
Á flor da pele, a poética contradição
De todos os poetas, a perdição
No fino limbo do desejo, a espera de salvação
Feito dor e contentamento em consumição

Custam as cartas para chegar
Até o verso se revirar em reverso para declarar
Ao destinatário [que ainda demora uma eternidade para entender]
Quantos riscos eu arrisquei correr

Escuta, ó formoso sol
Afasta de mim esse medo que o mar me trás
Pois sei que um dia, se ele voltar a me levar, vou tranqüila
Pois deixo em terra firme meu coração contigo

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Final do semestre

     Por um acaso qualquer pensei mais em ti nas últimas semanas. Das provas, a do teu olhar é a que me ocupou mais. Eram tantas as doses de mistério que eu até me esqueci de decorar e acabei me atrapalhando nas armadilhas das palavras. Fiquei perdida entre os livros de um conhecimento que não foi feito para ser tácito. É que as suas intenções ainda merecem muito mais horas de estudo e dedicação e eu nunca fui muito boa nessas habilidades. 
     Repare só no meu tom de voz. Nas olheiras, nas dívidas, nas anotações pela metade, na bagunça do meu quarto também. Repare nos dias, no fim de dezembro, nas luzes se acendendo nos alpendres das casas, nos pisca-pisca das janelas dos apartamentos e na insistente esperança que ainda aconteça o novo em meio a tantas decepções desse monótono ano.   
     Mas quem sabe você ainda prove o velho all-star e eu me encante por Platão. Quem sabe eu te dê um poema de presente e receba, em troca, uma nota do tipo "aprovada com louvor" e ganhe até uma estrelinha no meu caderno. E se nos encontrássemos no recreio e dividíssemos o mesmo todinho? Se matássemos todas as aulas que não nos ensinarem a resolver os nossos desencontros, você me daria a mão?
     Talvez você até tivesse razão de me acusar de falta de tempo.
     Talvez eu tivesse sim coragem para dizer: “Vem que eu posso te fazer bem”.
     Só peço que não me venha aparecer em sonho porque senão eu perco o sono e as noites ficam longas demais. Estou cansada de tomar prejuízo todas as manhãs pela cara de insônia e a pouca disposição para começar a viver. 

[A autora prestes a se despedir do novo letivo no vermelho. Ah, essas racionalidades financeiras e afetivas! Ainda muito mais complexas que as temíveis provas de MI (risos meio melancólicos!!!)...]

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Identidade

      O dia de faxina acabou sendo uma mera desculpa para viajar nas memórias que as paredes da casa contavam.
     Nas mãos, os rascunhos antigos da tentativa hilária de escrever um romance sobre a história de um gago que sonhava ser locutor de radionovela. Nas gavetas, as inúmeras indecisões registradas em agendas guardadas dos últimos cinco anos. Seria saudável tamanho apego à vida poeirada que aqueles cadernos contavam? Em todo caso, preferi deixá-los nos seus devidos lugares.
     Vi a mulher dos livros de Clarice, a cara diminuta e existencialista do quarto de uma jovem de vinte e poucos anos, a iniciante poesia-conflito. Tudo o que me deu nome, sobrenome e endereço.
     Não há como renegar a estranha e intrínseca vocação ao ridículo, ao patético humano, a esse incorrigível e convicto discurso que sustenta a poesia nas horas em que a vida se torna inacreditavelmente inapropriada. Essa sensação assumida de que posso tropeçar a qualquer momento, de não saber cantar, não saber dançar, de estar a um milímetro de uma gafe, a um suspiro de um escorregão, a um segundo do despertador tocar na melhor parte de um sonho bom.
     Estava ali as lembranças de quando amar foi sede e fome sem remédio e sem consolo. Quando nem o terapeuta acalmou o choro das inquietudes mais insólitas. Quando o limite foi mais imperativo que a possibilidade. Quando a boca calou, o pé doeu, a maquiagem borrou e corpo perdeu a elegância. Essa, assumo, já bastante apagada desde os tempos da infância.
     Por um breve instante restou somente eu e aquela imensa solidão sartriana que o filósofo se referia quando alguém tem a si mesmo nas mãos e pode olhar-se através das próprias escolhas. Um contentar-se descontente, inseguro, certas vezes ligeiramente crédulo.
     O eu e suas virtuosas contradições solitárias. A inatingível e filosofal busca por uma essência coerente, ainda que aristotelicamente dividida entre acertos e erros.
     Enfim, apronto delicadamente a cama para dormir como quem faz um ritual simbólico de renascimento, de identidade reconciliada. Deito exausta com uma sensação inédita de paz...

[Vencendo a insônia. Das tripas, coração!]

sábado, 16 de outubro de 2010

Por favor, não me chame o doutor

     Escondo-me no porão. Nos recantos escuros, a alma não tem receio de maldizer o que a incomoda. Fala palavrão, faz cara feia e até pirraça no meio da sala pra chamar atenção de quem estiver passando desavisado por perto.
     O dia dura mais do que convém e o suficiente para desatar os clamores do corpo.
     A começar dos ares provincianos, do desalinho matinal, da incorrigível cara de sono, do jeito banal. Nada de méritos, sem muita irreverência e com as velhas angústias irrespondíveis de sempre.
     Nem sei se pelo menos a poesia se salva de mim. Em mim ela é tão inconcreta, tão juvenil, tão fugaz. Tento, de forma artesanal e resignada, arrancar à força o fruto doce da alegria quando as palavras se escondem e, feito boba, imploro humildemente que elas não me faltem nas horas do desassossego. No entanto, nem elas nem você vêm quando tenho mais fome.
     Fico esperando na porta da sala enquanto rascunho, faminta, na palma da mão, uma única rima. É como se pudesse costurar com linha dupla as feridas abertas na minha carne. Só que esses pontos ninguém me ensinou a dar. Não aprendi a aproximar as bordas desse conceito abstrato.
     Até hoje nem sequer aprendi a cuidar de mim. Não há agulha e fios que dêem conta de uma conduta menos culpabilizante, ainda que eu merecesse. Nem sempre é fácil olhar-se com honestidade e admitir que se vive negligenciando emergências e interrompendo o choro para cobrar uma praticidade que, definitivamente, não se possui. 
      Os problemas crescem diretamente proporcionais ao grau de complicações que a vida impõe. Às vezes trato empiricamente, mas na rotina diária ainda insisto em preferir esse incorrigível movimento pendular de remissão incompleta e exacerbação. Têm horas que me falta ar, mas não me pergunte há quanto tempo começou. Eu não saberia verbalizar. Outras vezes dói tudo. Dores dessas que não se localizam, não têm nome, não se medem em escalas numéricas. Às vezes choro feito criancinha, outras vezes faço o gênero mãe-neurótica. Sou a carente, a irritada, a lacônica, a poliqueixosa. Tenho em mim todos os males e ponto.
     Tudo isso e mais algumas características, por hora impublicáveis, que ainda vão demandar outras reflexões, outro dia, outro post, outro começo de noite...

[Há quase quatro anos tentando entender esse negócio de "estudar medicina"]

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Móbile

                                                            Na raiz de todo movimento está a contradição. Sou um móbile vivendo a grandeza metafísica de uma mutação por minuto. Cada partida encerra um fim em si mesmo até quando da fartura sobra só o interminável segundo de um instante.   
    De inúmeras inadequações vive o poeta. Da tarde que não despede a saudade, da coragem que falta quando seus olhos me vêem, da palavra que não obedece ao sentimento que a originou, da dor que nem de longe corresponde ao peso da vida que me leva. 
    O resumo é apenas um recorte imperfeito da obra que desisti de escrever e, tantas vezes, reinventei após renascer. Envelheci nas páginas que aceitavam as confidências que os medos de criança não deixaram contar e contei segredos à boca miúda enquanto os ouvidos se distraíam vendo os versos rimando uns com os outros á espera do poema ficar pronto. Diversas vezes até escorreguei nas duras regras gramaticais do amor a ponto de me esquecer de conjugar o nome que faltava para complementar os meus modestos predicados.
     Agora, só resta publicar um manifesto para exigir o legítimo direito do ressarcimento do tempo que eu perdi ouvindo trezentas vezes a mesma música, voltando para casa sempre pelo mesmo caminho, contando os dias incalculáveis do calendário e ensaiando frases menos clichê.
     Mesmo que eu continue tão comum como antes. Mesmo que a poesia não amenize. Mesmo que setembro não traga tantas primaveras assim. Mesmo que o ponto final ainda seja tão reticente como agora...

domingo, 12 de setembro de 2010

Enquanto o sono não vem

     A madrugada está longe de ser uma confidente confiável. O grão do sono desfaz segredos como a última gota de um cansaço de dias que nem na agenda constam mais. Um comentário, uma tentativa de desenho, um verso triste ainda pela metade e o pragmatismo de uma página inteira em branco.
     Sono esparso, sargaço em mares para uma viajante pouco satisfeita com os rumos dos últimos ventos. O barulho do relógio soa como uma sentença de que o tempo passa, sem passar por mim. Só deixa de modo imperdoável suas marcas, suas lascas e até algumas de suas farpas. Algumas doem, outras nem tanto, tantas que até desaprendi a esquecer.
     Acostumei-me à pergunta; ao olhar dos parecem sozinhos; aos inadequados, à cadeira de balanço, que de movimentos tão monótonos, mais parece uma metáfora ainda por terminar.
     Só sei que setembro ainda não cabe em mim, nem mesmo se tivesse 31 dias. Nem mesmo minha idade me cabe. Talvez tenha mais de quarenta, tamanha incongruência. Pareço mais com a cara melancólica do outono que dessa charmosa primavera. Das praças na hora do entardecer que dos jardins em manhãs ensolaradas. Levo mais jeito para os sonetos que para a rima livre. Sou mais do chorinho, do cafezinho amargo, do caderninho de anotações que se julgam poéticas pelo simples fato de escancararem pequenas sinceridades.
     Só peço que a última idéia que sair, apague, por gentileza, a derradeira luz ainda acesa. Já é tarde...

domingo, 29 de agosto de 2010

Miudezas

ARTE DE SER FELIZ    
    
     "(...) Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
     Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
     Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim. "

MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. 26ª edição, Rio de Janeiro: Record. 

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Perguntas e respostas

     Existem dois tipos de perguntas. Uma que precisa ser respondida e outra em que se aprende convivendo com ela. Há perguntas que se inserem no campo prático da vida. Outras são filosóficas, existenciais. Por vezes, aflitivas. Perguntas práticas são aquelas que se contextualizam no campo da objetividade exigindo raciocínio lógico e ponderação. As perguntas existenciais, por sua vez, não provocam respostas instantâneas. Ao contrário, exigem demora e um longo processo de reflexão. Viver talvez seja uma forma interessante de respondê-las.
     Tenho a convicção de que uma pessoa se torna especial entre as demais justamente pela capacidade de viver intensamente pelas causas que acredita, de fazer com que seus projetos de vida sejam capazes de transformar quem ela é a partir daquilo que ela faz. É uma dinâmica de aproximar-se cada vez mais daquilo que é mais genuíno em si próprio. Por sinal, algo raro nesses tempos difíceis e corridos em que a inteireza perdeu  seu prestígio nas relações humanas.
     Pessoas que se empenham na realização de seus sonhos não se conformam com a uniformidade. Todo dia precisa ser diferente, descobrirem-se de modos diferentes. Certamente, o preço de ser diferente requer coragem. Coragem de ser, não simplesmente de fazer. O "ser" é mais difícil do que o "fazer", afinal, é no "ser" que o "fazer" se realiza plenamente. Faço a partir do que sou e do que a cada dia se junta ao que eu sou, fazendo-me mais dona de mim. 
     Quem sabe um dia ainda não descubramos que o coração guarda um lugar de silêncio que nada sabe fazer. Lá existimos em paz, sem a cobrança cruel da utilidade. É lá que está nosso primeiro significado, quando todas as coisas cessam e fica só o que nós realmente somos. Nesse lugar reside nosso lado mais sedutor, já que nele está guardado o valor essencial da autenticidade. Tudo mais é acidental, da maquiagem borrada ao calo do salto alto por trás de uma falsa elegância.
     Quero antes de tudo que o meu fazer tenha as marcas do que eu sou. É simples: medicina há muitos que fazem, mas é no exercício da profissão que cada indivíduo se mostra em sua intimidade mais profunda. Muitos fazem a mesma faculdade, mas se encontram de maneira diferente com o conhecimento que compartilham (compartilhamos?). Daí, surge a diversidade das práticas. Algumas mais acolhedoras, outras menos.  
     Agir é um desdobramento do meu ser. Todos são antes de fazerem qualquer coisa. Há um significado raro e único em cada ser humano, mesmo que, um dia, nós fiquemos totalmente impossibilitados de realizar alguma ação. É, inclusive, desse princípio que nasce todo o desdobramento conceitual dos direitos humanos. Nós somos mesmo na incapacidade dos movimentos, na inconcretude dos gestos, na transitoriedade das palavras, na limitação dos saberes. Somos muito mais do que podemos dizer sobre nós mesmos.
     Eu desejo que nunca me faltem perguntas que me incomodem, que questionem meus  princípios, que me recordem minhas origens e aflorem meus sentidos, mesmo que as respostas não sejam tão fáceis assim.

Com a palavra, Vinícius...

O haver


Vinícius de Moraes




Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! Porque eles não têm culpa de terem nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para comer tudo quanto existe


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida


Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinícius


Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história


Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil


Resta esse sentimento de infância
Subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade


Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje


Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante


E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança


Resta esse desejo de se sentir igual a todos
De refletir em olhares sem curiosidades e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino


Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada


Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca pelo equilíbrio no fio na navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo
E esse medo infantil de pequenas coragens


Extraído do livro “Jardins Noturnos- Poemas inéditos”

sábado, 24 de julho de 2010

À luz do dia

     O que sei pertence agora à dor do meu canto. Desafinou a rima de um desencanto.
     De amarga cor, a vida é só o que se consegue extrair dela. A escolher: do odor suave ao sabor vinagre.
     Pobrezinha, a jovem, conhecida pelos medos sutis, contentou-se somente com o que cabia na mão, ora guardado nas gavetas da cômoda frustração. O samba, o som e a dor da canção...
     A menina ficou pelo terraço escuro da bagunça com ar de cansaço. Amiudou-se no curto espaço do que poderia ser e não foi. De tão simples, esqueceu-se do quanto era triste ainda. Que nem chamar para dançar sabia...
     Com poucos atrativos, o que era de esconder velava na poesia. Silenciava, em palavras anacrônicas, os olhares e os pesares. Analógica, jamais se convenceu que quem importava jamais viu nem sequer se comoveu. Nem na versão modesta, nem na seresta, nem na acústica, nem nesta.
     Entardeceu antes mesmo que o sol despontasse atrás de uma montanha de desejos. Ficou brega de tanto que sobrou querer. As flores e os laços só enfeitaram o sorrisinho disfarçado da hora tarde.
     Drama de uma nota só; comédia a sós; trama de vários nós, mas nunca um NÓS.
     Canto baixinho, franzino, quase mesquinho de tanta timidez.
     Tanto artifício só para um personagem?
     Seria um desperdício?
     Não, talvez sobrasse algo melhor para dizer no final.
     Mas não quis terminar o poema, era tarde demais para pensar um refrão menos cliquê...

[A autora querendo poesia à luz do dia...]

domingo, 27 de junho de 2010

Nem num post só

     Escrevi um estratagema audacioso para encontrá-lo entre canto e rima. Nos seus planos, o meu amor é a nota mais dissonante que a sua banda já tocou. Pode confessar. Só acreditei no que disse ser possível e assumi o imponderável romantismo entre encantos e escombros.
    O meu poema compensou a frase clichê dos poréns e perdoou os apertos do peito. Também prometi desvendar, até o final do inverno, seu acorde perfeito. O segredo do seu prato preferido agora já é trivial na minha mesa. Subordinei suas conjunções às minhas concessões temperamentais.
     No mais, a sombra do sol estende a tarde como um lençol enquanto o tempo se eterniza na janela do meu quarto. Já a varanda lá de casa, por sua vez, pretensiosamente só encomenda lua cheia quando alguém, de propósito, chega sem avisar...
     É certo que a canção que eu fiz não faz calar as palavras. O irreversível imaterial desafia as regras da poesia e você, certamente, não foi feito para caber no papel nem se resumir num post só. Mais fácil os advérbios variarem que os adjetivos contemplarem toda a inspiração dessa hora.
     Perdi o repertório. Esqueci a letra em público e como conjugar os verbos mais sérios quando você me olhou e, à beira do abismo, me fez rir das perdas da semana passada. 
        "Não é nada, não é nada!”, batuquei desajeitada num tom de samba e piada.
       Por fim, brincamos de desafinar o coro chato dos descontentes à nossa volta e finalizamos improvisando uma prévia das 7 maravilhas do lugar imaginariamente inventado por nós:


“Sorvete de menta com chocolate;
-Férias com pijama surrado;
-Relógio despertando domingo só pelo prazer de desligá-lo e dormir sem culpa;
-Bossa e vinho tinto;
-Jazz e sábado à noite;
-Música de Chico à dois;
-O céu como teto.”

     Acabei ficando crédula de uns dias para cá.

sábado, 19 de junho de 2010

Imortal

     Faleceu nas Ilhas Canárias, ao lado da família,  numa tarde do verão europeu em meados de junho de 2010, o escritor português José Saramago.
     Desde essa notícia, restou-me uma inconsolável sensação de orfandade. Os escritores deveriam ser terminantemente proibidos de morrer.
     Como lidar com a angústia de nunca mais poder pousar as mãos sobre a criatividade de alguma nova produção literária do escritor? O que fazer sem sua prosa e seu poder de recriar a vida pelo dom alquímico das palavras?  Como acostumar-me sem os abalos sísmicos de suas críticas ácidas dirigidas aos desatinos capitalistas ou à parcela emburrecida das esquerdas?
     Recordo-me, nesse instante inominável de luto e nostalgia, dos caminhos que percorremos juntos no meu primeiro contato com sua obra aos 18 anos lendo "Memorial do Convento". Era como se ele me pegasse pela mão levando-me a conhecer os bastidores do século XVIII. E, assim, tive a melhor aula de história da minha vida. Agora, resta-me apenas um memorial de saudades...
     Lembro-me do dia em que entrei numa livraria ansiosa por adquirir um de seus lançamentos, o livro “As Intermitências da Morte”. Em processo de descoberta dos encantos da arte, a voracidade da jovem leitora foi detida pelas barreiras financeiras que, ainda hoje, insistem em limitar a democratização da literatura. Trinta e cinco reais custava o exemplar, e isso era tudo que eu não podia pagar. Voltei para casa sentindo-me vilipendiada, como se negassem a mim o legítimo direito do acesso à cultura. Tive de relevar a “pressa” até poder encontrar o livro, tempos mais tarde, em alguma biblioteca pública. 

     E salvem as bibliotecas da extinção e as abarrotem de  Saramago, por favor! 

     Hoje, cinco anos mais tarde, percebo que minha estante não esconde a predileção pelas narrativas longas e densas do escritor português. Antes de adormecer, pensei:

     - Por que não retirar as “Intermitências da Morte” da estante? A forma mais interessante de celebrar a vida e a obra de um escritor é reler alguns trechos de sua prosa.

     “Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”
As Intermitências da Morte, 2005.


     Decidi, então, entrar de novo no universo de reflexão existencial de Saramago e me permiti eternizar o autor pelo poder de sua obra. Faça o mesmo. Façamos, sempre!

[Conheça também o espírito blogueiro da Fundação José Saramago em http://caderno.josesaramago.org/]

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Monólogo particular

     Corta a arma a espera de cumprir seu fim. O fio da navalha ensaia mais um discurso diário de lamentos. Cinco minutos dedicados a um monólogo particular de queixas solitárias. Menos do que precisaria, certamente.
     Choros de dores não ossificadas, sem rosto definido, alojadas num lugar que não aprendeu a nomear. Sofrimentos sem motivos claros à espreita de alguns ares ensolarados pra variar. Quem sabe na próxima estação, insiste a se perguntar?!
     Histórias ancoradas, já um pouco cansadas de imaginar felicidades dedilhadas que nem sequer imaginou compor. A corda, o laço e o nó não desataram as duras amarras que ajudaram a impor.
     Menina, ainda, refugiou-se num cantinho escuro para soluçar as mágoas do não-acordo. Adormeceu ali entre papéis, promessas, tintas, poucos sonhos e saudades que, naquela data, decidiu esquecer. Não se enganaria, entretanto. Voltaria a acordar esperando o destino de noites marcadas para amanhecer. É um jeito de se manter sã, pelo menos até o momento de voltar a sorver-se nos velhos motivos aflitivos de antes.
     Por hora, contentar-se-á com alguma distração passageira. Quem sabe brincar de pintar a casa com cores de um entardecer melancólico de inverno. Distrair-se com a tristeza convidando-a para entrar.
     Mesa posta, talheres, copos e mais algumas minúcias que acabou esquecendo. De resto, só o detalhe das violetas tímidas na janela disfarçando a falta de móveis no ambiente. Acabou se acostumando com um coração de pequeno espaço. Os avisos na porta da geladeira não escondem a natureza dos últimos dias. Longos, frios...
     Menos encorpados que um vinho tinto.
     Menos densos que um discurso de botequim.
     Só um pouco mais pretensiosos em reclamar outros sabores, ultimamente.
     Mais adocicados. De preferência agridoce no final para não enjoar.

sábado, 29 de maio de 2010

Depois de um mês

     Escolhi outra bebida, brindei à tarde com um poema. Frio, cinza, maio maior que todos os outros versos. Se soubesse dançar, dançaria um soneto com estribilho decassílabo. Assimétrica, embalei um refrão com jeito de dilema vespertino. A escolher estavam um drama de domingo magro ou um baile de terça-feira gorda. Preferi, no entanto, a cadeira de balanço, o ritmo das lembranças e as baladas recordadas do último outono.
     Tenho todos os motivos menos dois para ser triste, mas não é hora de cálculo matemático. É provável que a tarde não queira espantar a boa ocasião da inspiração. 
     Longo mês. Exatos trinta dias sem nenhuma produção que pudesse amenizar a loucura ou me jogar de vez dentro dela. Na lixeira, só alguns rascunhos com segredos que agora nem mais novidades são.
     De susto, canto minha aldeia. De medo, minhas miudezas me ocupam por demais. Rascunhos tantos que nunca sobra tempo para passar a limpo. Ficam todos ali: inacabados, empilhados, amuados, corados de vergonha e da sinceridade que foi possível naquela hora...
     Reticente só eu em não lê-los há tanto tempo. Disfarço, fingo não sê-los. Faço feito carta sem selo. O mistério é uma forma contente de proteção do remetente ao possibilitar ao sujeito esconder o predicado da ação. A metáfora, a lágrima que escorre sem que ninguém peça uma satisfação.
     A medida certa, nunca a encontrei. Talvez nem quisesse achá-la. Gosto mais dos poemas aguados, dos dançarinos desengonçados, dos filmes do passado e do relógio de ritmo atrasado.

     Às vezes acho graça, às vezes choro.
     Às vezes danço, às vezes corro.
     Às vezes faço poema, às vezes só silêncio.


[O desenho desse texto é uma generosa contribuição da minha amiga talentosíssima, Lexina Florindo Carvalho, feito especialmente para o blog.] 

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Da poeira aos detalhes

     Não me venha convencer que a lucidez é uma proposta racional. Sempre fui pouco convencional, até nisso. Até para acreditar no óbvio destino de uma felicidade politicamente correta. Sorrisos muito simpáticos nunca fizeram meu estilo, nem minha cabeça.
     Já me perdi em inúmeras das ruas que você diz conhecer todas as trilhas. Nas linhas do artesanato que faço, estou longe da pretensão de desvendar os contornos diversos das causas que me movem. Fui feita para bordados extensos, tecidos pra dentro, controversos. Dos versos, preferi sempre os contrários. Contraditória, a rima ao avesso, sem gesso enquanto teço mais um pequeno retalho de dor desses dias de tropeço. Os joelhos esfolados são apenas mais um dos detalhes, não repare.
     Costura, bordados, reparos. Ainda ando me confundindo nas cores que escolho. Na maioria das vezes, descombino. As alegrias são acontecimentos raros. Caros também.
     Gosto desse ar de museu de antigüidades que a vida me deu. Concessão sem direitos autorais, inclusive. O barulho que ecoa no recinto é só o suficiente para uma pausa no ensaio do silêncio. Depois, a penumbra entre luzes, o tempo da observação, o olhar feito para a demora. Cada um guarda o que pode e o que tem para guardar.
     Amontôo a vida pelos cantos. O tempo segue seu rumo, só eu não. Parei na poesia que não termina nem permite intervalos duradouros. Eterna só mesmo a espera. Enquanto isso, continuo envelhecendo aos poucos... Nessas páginas, lentamente.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Visita

     Deus mora na surpresa. Desvendei, num desses dias, um de seus mais inusitados segredos. Ele veio até minha casa me trazer uma encomenda. Chegou sem avisar numa tarde quente, abriu a geladeira sem muita cerimônia e bebeu um copo de água gelada. Por fim, pediu que eu não repasse sua pressa e que tinha vindo apenas para me entregar o livro que eu havia pedido. Depois, partiu.
     Seguiu a trilha que dava para o fundo do quintal. Deu comida aos passarinhos, provou da doçura da jabuticabeira e saiu pulando por entre as  margaridas para não machucá-las. Parecia comigo quando criança.
     Só que o melhor ainda estava por vir. Ao retornar para dentro de casa, a surpresa de um bilhete deixado por Ele na porta da minha geladeira. 
     - "Nem Deus escapa de momentos de cafonice" diriam certamente alguns dos meus amigos mais críticos. 
     Eu, no entanto, só confirmei minhas suspeitas. Sempre acreditei que Ele fosse um romântico incorrigível, quem sabe um leitor de poesia. É próprio de sua natureza transcendental gostar mais do discurso simbólico do que do racional. Tive até a ligeira impressão de vê-lo um tanto irritado por causa dos desmandos intolerantes revestidos de justificativas "pseudo-religiosas" que alguns cometem em nome Dele pelo mundo afora.
     Recolhi imediatamente o rascunho improvisado. Guardei-o na gaveta das minhas memórias atemporais. Era inacreditável imaginar que eu tinha um bilhete Dele escrito só para mim.  Entretanto, preferi nunca comentar sobre o fato, sob pena de me acusarem de ter perdido de vez o juízo.
     Nessa noite, num acesso de coragem, resolvi dar detalhes do acontecido. A letra era um pouco feia, admito. O conteúdo, por sua vez, compensava a pouca habilidade para a caligrafia. Versos simples e irreverentes retirados do poema “Filhinha” da poetisa mineira Adélia Prado: "Deus não é severo mais. Suas rugas, sua boca vincada são marcas de expressão de tanto sorrir pra mim."

sábado, 20 de março de 2010

Memórias

     A jovem poetiza nunca temeu o ridículo. O bom gosto está no prazer de assumir o risco de apenas insinuar-se sentimental.
     É cíclica a vida, assim como sugeriram os gregos na antigüidade. O tempo, imaginação que dá conta do que a realidade por si só concebeu. Mérito da criatividade própria de quem tem muitas horas vagas de andança e divagação. Aboliu-se a finalidade, o porquê teve dúvidas se a certeza é mesmo a senhora da razão.
     Hoje tive vontade de aposentar a maturidade, de dar folga para a suposta seriedade até entrar no delírio franco de trancar as chatices do dia numa gaveta e depois jogar a chave fora no riacho que passa em frente da porta da minha casa. A roupa mais colorida do meu guarda-roupa me espera. O velho boton traz o lema da estrada que me leva. As frutas roubadas no quintal da vizinha ranzinza nunca tiveram tanto sabor de perigo e subversão.
     Fim de março. Abril promete encher as quaresmeiras de flores. Roxas, como a cor preferida da paixão e da dor, mas dessa coincidência eu não me ocupo mais. Deixo que os poetas procurem entendê-la. No momento, decidi aproveitar a vista que me arrebata.
     Desejo entrar na história só para enturmar o patinho feio, reconstruir as casinhas dos três porquinhos junto com os sete anões, convencer o menino Pinóquio a confessar seu amor platônico pela Bela Adormecida e criar coragem para colocar dread nas madeixas de Rapunzel. Depois rir até sentir cólicas na barriga de tanta felicidade.
     Ao final da leitura, a próxima travessura é fazer pirraça no meio da rua e chorar até acabarem as lágrimas por um algodão doce da pracinha. Cama quentinha, desenho animado na TV enquanto a chuva faz carícia no telhado e espalha cheiro de aconchego. O frio anuncia a proximidade do inverno. Não há problema, a lareira me confidenciou numa dessas noites geladas que a melhor estação do ano é o desejo.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Manifesto em nome da defesa intransigente dos Direitos Humanos.

     Em 21 de dezembro de 2009, em cerimônia pública em Brasília, foi lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), o terceiro da história, e desde sua publicação, tem causado forte reação contrária de setores conservadores da sociedade brasileira.
     Infelizmente, muitos desses ataques ao PNDH-3 desconsideram o contexto de amplo de debate nacional que antecedeu a elaboração do documento através de um processo de discussão que envolveu grande participação popular, consultas públicas e conferências em todos os níveis (municipal, estadual e federal), coroadas, em dezembro de 2008, com a realização da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, a qual contou com a presença de milhares de representantes do poder público e da sociedade civil.
      Assim, é imprescindível não falar como nunca antes se tinha avançado tanto, nesse país, no sentido de contemplar a agenda popular de luta por direitos humanos ao tratar de questões como a democratização do acesso à terra e dos meios de comunicação, a abertura dos arquivos da ditadura militar (1964-1985) como direito do povo brasileiro à memória e à verdade, a autonomia das mulheres para tomar decisões sobre a própria vida reprodutiva, união civil homossexual, a adoção por casais homoafetivos e a defesa de um modelo econômico pautado pela sustentabilidade.
     Em linhas gerais, o debate sobre o PNDH revela ao menos duas vertentes fortemente divergentes na compreensão dos direitos humanos. De um lado, os que compreendem os direitos humanos com nuances distorcidas na medida em que ficam condicionados a interesses próprios ou a privilégios “intocáveis”; de outro, os que compreendem direitos humanos como conteúdo substantivo de uma luta cotidiana para que cada pessoa possa ser o que desejar ser e não como os outros gostariam que fosse. A você, caro leitor, que dedica seu precioso tempo a esta leitura, o que parece ser mais racional?
     É impossível imaginar que a sociedade brasileira não repudie a tentativa de politização eleitoreira do PNDH. Trata-se da construção de pressupostos para uma sociedade que garanta vida com dignidade para todos os brasileiros, realidade que só acontecerá quando as Políticas Públicas de Direitos Humanos forem prioridades da nação. Nesse sentido, todo cidadão crítico deve repudiar a imposição de argumentos rasos e maniqueísmos tolos como verdades absolutas, principalmente quando visam desconstruir o PNDH e minar o cenário de debate.
     Nada mais intolerável que a discriminação de negros, ciganos, indígenas e outros grupos sociais; o machismo que perpetua a opressão e a violência contra a mulher; a falta de abertura para a liberdade e a diversidade religiosa impedindo o cumprimento do preceito constitucional de um Estado Laico; a criminalização da juventude, dos movimentos sociais e dos defensores de direitos humanos; a legitimação da violência e das desordens latifundiárias causadoras da pobreza no campo e da face perversa do processo de acumulação do agronegócio; o patrimonialismo que coloca o Estado numa condição subserviente a interesses privados; o silenciamento diante dos veículos de comunicação descompromissados com os direitos humanos, com o direito à comunicação e sem qualquer responsabilidade social e a manutenção ilegítima de privilégios a militares revanchistas e corporativistas que insistem em ocultar a verdade sobre a ditadura militar e negar punição devida aos torturadores do regime.
     Talvez um dos pontos mais críticos seja este último. Como bem alertou o cineasta Silvio Tendler “O regime militar não está sendo julgado pela quebra do sistema público de saúde ou pela quebra do sistema educacional (...). A sociedade quer apenas o julgamento e condenação da prática de crimes hediondos. Tortura, estupro, morte e roubo não podem ser atos políticos passíveis de anistia”. É essa mesma arbitrariedade/permissividade, gestada dentro do poder público, que garante a permanência da tortura mesmo que condenada pela lei, dos altos índices de letalidade das ações policiais, da impunidade que livra “colarinhos brancos” e “mensaleiros” e condena “ladrões de margarina”, que faz vista grossa para a truculência da polícia. Esta mesma que, recentemente, reprimiu de forma brutal manifestações pacíficas de dezenas de jovens contra corrupção no governo Arruda (Distrito Federal). A violência ficou registrada em cenas deploráveis com direito à tropa de choque, cavalaria, tanque de guerra, bombas de efeito moral, gás de pimenta e pisoteamento de manifestantes pelos cavalos.
     Quem não se recorda do episódio ocorrido na madrugada do dia 23 de Junho de 2007 na cidade do Rio de Janeiro em que três jovens de classe média espancaram e roubaram a empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto (32 anos), num ponto de ônibus,  quando seguia para o trabalho. Como “justificativa” para o que fizeram, alegaram ter confundido a vítima com uma prostituta, o que faz do crime ainda mais assustador.
     Mas a violação dos direitos humanos ainda continua por aí correndo o risco de passar de forma desapercebida por cidadãos mais desatentos. Quando se noticiou recentemente o episódio do garoto de 2 anos de idade, no interior da Bahia, que teve dezenas de agulhas introduzidas no corpo pelo padrasto, não foram poucas as referências da mídia que consideravam o crime como um nefasto ritual de magia negra com envolvimento adicional de uma mulher caracterizada nas reportagens como “mãe-de-santo”. Sob um olhar mais crítico fica difícil não reconhecer que diversas religiões de matrizes africanas tiveram suas crenças violentamente agredidas por informações discriminatórias, tanto que muitos pais e mães-de-santo tiveram de vir a público explicar os princípios de pacifismo de suas crenças. Essas veiculações preconceituosas devem servir para jamais nos fazer esquecer que as bases históricas da religiosidade brasileira também passaram pelo ferro, fogo e chicote. Para que essas heranças duras de opressão não ditem vez nos tempos futuros, nada mais respeitoso e reconciliador entre passado e presente que os espaços públicos garantirem o direito a todos de expressar sua religiosidade livremente, seja ela cristã, judia, de matrizes africanas, indígenas, entre outras.
     Outra questão polêmica. Diante da inteligência do espectador violentamente agredida por uma mídia que financia a baixaria escancarada, nada mais justo do que as concessões de emissoras de rádio de televisão, como concessões de um serviço público, respeitarem os direitos humanos e de cidadania. Não há ataque à liberdade de expressão, mas sim uma proposta de mecanismos de fiscalização e de participação da sociedade civil com relação exclusivamente aos direitos humanos. Não é nenhum absurdo totalitário, apenas o que já ocorre na Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos com a criação de agências reguladoras pelo Estado que contam com a participação de diversos setores da sociedade. Na verdade, o que mais tem assustado os donos de mídias é a possibilidade de cassação das outorgas concedidas para exploração dos serviços públicos de radiodifusão no caso de as empresas de comunicação não seguirem as diretrizes oficiais em relação aos direitos humanos. O que os empresários de comunicação precisam é de parar de rotular de censura toda e qualquer iniciativa que vise, minimamente, cobrar responsabilidade social dos meios de comunicação. Ora, nada mais constitucional que as concessionárias de serviços públicos de rádio e TV sejam cobradas quando violarem os direitos humanos por meio de penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação de outorga. Contra algumas emissoras que fizeram parte da reação empresarial contra o PNDH-3 pesam o fato de pouco envolvimento na construção da Política de Direitos Humanos e o boicote promovido pela Associação Brasileira de Emissoras de Televisão (Abert), pela Associação Nacional de Editoras de Revista (Aner) e pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Vale lembrar que, no dia da publicação do Programa em Brasília, grandes veículos de comunicação davam mais destaque para o novo corte de cabelo da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, do que para a pauta de Direitos Humanos. Basta pegar algum jornal de grande circulação nacional e avaliar a pauta e as prioridades de cobertura do dia 21 de dezembro.
     O que dizer também das relações de trabalho que precarizam-se cada vez mais, dos professores agredidos dentro das salas de aula, da seca do Sertão e daqueles que se aproveitam politicamente dela, da colocação das populações ribeirinhas e dos povos indígenas em posição secundária quando o assunto é grandes projetos hidrelétricos (por que tanta resistência em se discutir as arbitrariedades na construção da Usina Hidrelétrica do Belo Monte na Bacia do Xingu no coração da Amazônia?), do avanço desastroso da fronteira agrícola à custa do desmatamento. Será que a Pandora de Avatar é aqui?
     Enfim, não podemos admitir recuos. O que está posto como desafio não é mudar o PNDH, mas sim tomá-lo como instrumento de transformação radical da sociedade em que vivemos para que a realização plena dos direitos humanos seja um sonho possível de todos nós.

Para ler o PNDH-3 na íntegra acesse: http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Velejando


     Colha agora os frutos da desordem. Os mares revoltos acenam que terra firme a muito deixou de existir. O medo é convívio diário e a tristeza já tem sua marca impressa no veleiro. Sempre tive mais talento para a melancolia, nunca precisei esconder. Às vezes tento apagá-la, na maioria das vezes não. Deixo doer feito silêncio inconfesso.
      É o preço que se apaga por algumas inspirações.
     Não há ponto de partida nem destino de chegada. Moro na trajetória da estrada incerta, no incontável desejo do que ainda não sei mensurar, no terreno das palavras recriadas, na vibração de um som que teimo não desafinar.
     Escolhi para hoje uma letra de Caymmi, uma epifania de Clarice e um poema de Drummond.
     A monotonia veio dos teus olhos; o peso da vida, sim, eu aceito, é defeito de fábrica.
     Em medidas contadas, o tempo se encarrega de desfazer as mágoas. Ressaca das águas, das lágrimas também. Mistérios à deriva, a espera que os ventos tragam coragem para enfrentá-los. Ainda não me candidatei. Já fui mais pretensiosa, nisso, é verdade, melhorei...
      A vida me espera no cais. Os lampejos do farol não fazem do caminho mais seguro, nem a maresia mais suave. Mas nada tão difícil quanto compreender a essência das despedidas. Nas retinas do porto as cores da saudade têm contrastes trágicos e comoventes. Também um pouco de pressa.
 
“Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos...”


     E aceito o risco iminente de amar...


“É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar ...”

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Semanalmente

     A tarde se despede com cheiro de saudade. Na boca fica o gosto amargo da despedida. De quem foi sem ter ido. Presença a recordar ausência. E o peso da dúvida insiste em desvendar um adeus que não convenceu. Eram meros desejos de domingo?
     Nenhum verso mais vale a pena ser escrito, nem minhas segundas intenções reveladas. É tarde...
     Teça melhores desculpas para a próxima terça que quarta eu já não te espero mais .
     A semana segue sua sina de passar lentamente e nem mais a quinta sinfonia me refaz a melodia. Ando sem cor, sem tom, sem letra. Até os talheres se cansaram de esperar pela siesta e o jazz de avisar que não passa no próximo sábado.
     O calendário entendiou-se da precisão das datas e o relógio desistiu de marcar o compasso das horas.
     Na minha agenda sobrou um recado do último dia. Uma frase tímida, ao lado da lista de compras. Sem rimas, sem poesia, com seu estilo próprio de poucas palavras. “Ninguém parte sem a pretensão de voltar...”

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Em outra estação

     As tardes são mais tristes que as manhãs. Os deprimidos sabem disso. O dia cumpre a sina de se descolorir lentamente enquanto os primeiros retalhos de sombra caem sobre a terra e o céu se diverte brincando de fazer aquarela.
     Caminho pela cidade calma sem pressa de voltar ao ofício de ser triste. Os carros poluem o ambiente enquanto eu despoluo a mente. As pessoas se trancam em casa para sacramentar a rotina sem surpresas enquanto eu teimo em me acidentar no amor que me desconcerta o tempo todo.
     As cores do dia já começam a desbotar, assim como o que sobrou do último vinho, do perfume do derradeiro abraço, da música que não chegou ao fim...
     Partir é também uma forma de esquecer o coração partido em palavras que nunca foram ditas e de devolver-me ao que sobrou de mim. O que resta agora é apenas uma saudade aflita com um bilhete de viagem na mão e um ramalhete de gestos na outra.
     Melhor assim. Talvez meu coração decida de vez embarcar numa estação distante, com destino às melhores manhãs que eu ainda tenho o direito de viver. Nem que seja só para ter o prazer de dizer que vou ser bem mais feliz que você. Ah, se vou!

[Este texto tem inspirações na música intitulada "Naquela Estação". Uma composição de Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos. Sugiro a gravação memorável de Adriana Calcanhoto]